24.4.06

Videogames da violência

Há uma cena do último filme de Spike Lee (“Infiltrado”) que me captou a atenção. Uma cena secundária no contexto do enredo, mas que retrata o apetite de certos cineastas para enfatizarem mensagens politicamente correctas através do cinema.

Quatro bandidos assaltam um banco e fazem cinquenta reféns. As primeiras impressões do cabecilha do bando são as de uma personagem violenta, gélida, insensível, até desumana. A certa altura, o assaltante aproxima-se da única criança refém – um rapaz negro, aparentando dez anos. O rapaz está entretido com a sua Playstation portátil. O bandido passa-lhe para as mãos uma fatia de pizza e recebe, em troca, a Playstation. Ele continua o jogo que a criança interrompeu para saciar a fome. Pergunta-lhe o objectivo do jogo. O rapaz responde-lhe: “é uma luta dentre gangs de rua, e quanto mais pessoas matares mais pontos recolhes”.

Enquanto o diálogo decorre, passam imagens do videogame. O bandido joga na posição de bandido que sitia um polícia e dispara a matar. A perícia não foi total: o polícia jazia ferido, encostado à parede, escorrendo sangue do ombro. Havia que dar o golpe de misericórdia, retratado com a violência que alguns filmes do género cultivam de forma subliminar. O golpe fatal desfigura o polícia. É aqui que o realizador aproveita para passar a primeira imagem humana e sensível do cabecilha do grupo. Com a suavidade de um pedagogo, devolve a Playstation ao rapaz e anuncia que vai ter uma conversa séria com o pai, sitiado noutra sala. O bandido tinha ficado impressionado com a violência gratuita do videogame. Achava-a nefasta para o desenvolvimento da criança. E, apesar de estar no lugar de um inumano assaltante que prolongava o terror mental dos reféns, ainda havia espaço na sua consciência para ficar perplexo com o videogame.

Não me é difícil concordar com a mensagem veiculada pelo filme. A profusão de violência gratuita em jogos para crianças e adolescentes é assustadora. Mas não se pode acusar a indústria de jogos para computador e consolas como a exclusiva culpada da deriva de violência. Os desenhos animados que preenchem o imaginário das crianças são um repositório de lutas e armas e sangue e morte. É a natureza humana que faz da espécie canibal de si mesma: adultos mestres na violência sem sentido, que as crianças, na fase da aprendizagem que vem com o crescimento, começam a interiorizar. Banaliza-se a violência e, pior que tudo, banaliza-se a morte. A banalização da morte tem o seu expoente máximo nos jogos de consolas e computadores: o herói que manipulamos através das teclas da consola tem sempre várias vidas. Como se fosse verdade que os gatos têm sete vidas, também nestes jogos as vidas são recicláveis.

O que me inquieta são os mecanismos de formação da personalidade e as imagens inculcadas pelas crianças agarradas a consolas com estes jogos que são uma orgia de violência. Até que ponto se apercebem do valor da vida – da própria vida e, mais importante ainda, da vida dos que os rodeiam? Até que ponto o cérebro gravita em função de imagens de violência, como se apenas a violência fosse o imaginário destas crianças? Elas crescem. Passam a compreender os fenómenos numa dimensão que perde a fantasia dos jogos, ganhando as cores da realidade. O que me deixa inquieto é a impressão que as personalidades ficam moldadas nas horas a fio gastas à frente das consolas, a matar os vilões (ou os polícias, em versões modernas em que os polícias são os alvos a abater), a morrer mas logo de seguida a recuperar uma das vidas creditada pelos pontos já arrecadados.

Só não concordo que o assunto seja mais um pretexto para o exercício da moralidade colectiva em toda a sua pujança. Posso não gostar do tipo de jogos que cultiva a violência fácil. Mas não posso embarcar na missão colectiva que denuncia esses jogos, num lobbying que pressiona a retirada das estantes nas lojas da especialidade. Cabe aos pais o discernimento para exercerem a censura necessária. Para vedarem (ou não) o acesso destes videogames às consolas dos seus filhos. Porque, uma vez mais, a educação dos filhos é mister dos pais, não do país.

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