18.4.06

Páscoa e crucificações

Para um ateu, a páscoa é destituída de significado. Em rigor, não vem desprovida de significado: há a componente material, as prendas aos afilhados que tiveram a desdita de escolher como padrinho alguém que anda tresmalhado dos caminhos de deus. Vou ao baú das recordações e vasculho nos cantos mais escondidos, tentando encontrar restos de memórias pascais. Tirando o paganismo materialista da páscoa, ainda menos lembranças que o natal. Só o almoço em família, os ovos de páscoa, as amêndoas, o cortejo pascal que descobri aos vinte e três anos numa estrada perto da Póvoa de Varzim.

Consigo encontrar uma memória que se repete todos os anos no volátil calendário pascal. As crucificações que retratam a via-sacra que Cristo terá percorrido até morrer, pregado de mãos e pés numa tábua tosca. Crentes com fé exacerbada e aguçado espírito de sacrifício prometem a si mesmos que passam pela mesma mortificação de Cristo. Revisitam a historiografia oficial do cristianismo, numa procissão que é um acto compungido para eles, pregados a uma cruz, vendo como o sangue escorre das mãos e dos pés atados por pregos às tábuas da cruz.

A modernidade civilizacional do ocidente temperou os excessos da fé. Desde que recordo de ver imagens de crucificações vivas, tenho a ideia que elas ocorrem em lugares longínquos, algures nas Filipinas onde a devoção religiosa atinge um fervor inusitado. Não será pela Europa, onde o cristianismo fermentou com fulgor, que se assiste às pungentes manifestações de pessoas que se deixam pregar a uma cruz, como se fossem as encarnações vivas de um Cristo que terá morrido há mais de dois mil anos. É algures num lugar escondido na geografia, onde os paladinos da civilização avançada (a nossa, supostamente) diriam, sem hesitar, que isso acontece porque se trata de um lugar atrasado no ranking das civilizações.

Pouco me interessa saber quem possui a civilização mais avançada. Ou discutir a sociologia do fenómeno, tentando perceber a aversão dos fiéis ocidentais à crucificação. Folheio a memória: as dolorosas crucificações como a imagem mais viva que retenho da quadra pascal. Pela impressão que as imagens me causam. Sabendo que há sempre pessoas dispostas ao sacrifício de verem mãos e pés cravados numa cruz de madeira. E impressiona-me ver as caras daqueles nativos quando se entregam ao ritual sacrificial. A tranquilidade que esconde a dor terrível que devem sentir quando os pregos penetram na carne das mãos e dos pés, quando o sangue se começa a escapar, espalhando um rasto perseguido pelos devotos que seguem na procissão.

Para um ateu, esta exibição de fé é grotesca. Uma mortificação estúpida, quantas vezes no cumprimento de promessas pessoais que pagam dádivas que, acreditam, têm o selo divino. Uma ordenada manifestação de fé colectiva, no ardor dos devotos que partilham a dor com aquele que se entrega ao sacrifício da cruz. Para um ateu, nada disto fará sentido, por entre a descrença na história do cristianismo e a fé ausente. Mas um ateu só cumpre a sua exigência de tolerância se respeitar as exibições de fé dos outros. Sejam as crucificações que enchem a carne de chagas dolorosas, as peregrinações a Meca, ou as cabeçadas no muro das lamentações.

Um ateu olha com admiração para todas estas manifestações de fé. Sem que isso seja uma contradição com a irradiação ateia. Apenas uma salutar inveja de quem consegue ter fé num deus, acreditar nos dogmas de uma religião, ter a certeza que a morte franqueia uma nova forma de vida, desmaterializada. O ateu é aquele que não consegue forjar uma crença, permanecendo fiel a si mesmo, na teimosia de uma honestidade angustiante. E se um ateu olha com admiração para as manifestações de fé alheias, não pode haver quem veja nisso a auto-negação do ateísmo. Apenas que a fé, qualquer fé, passou ao lado do ateu.

Para ele, seria fácil adjectivar as fervorosas exibições de fé em todos os credos. Como seria cómodo apontar o dedo e denunciar a estupidez humana de quem se entrega ao ritual da crucificação. Seria, ao mesmo tempo, a forma mais estéril de ajuizar comportamentos que lhe são exteriores. Sem os dons da adivinhação dos pensamentos alheios, estaria a cair no alçapão da incoerência. A esgravatar bem fundo a tumba da intolerância. Em vez disso, olha com assombro para o sacrifício a que se entregam os devotos pregados na cruz. Sabendo que ele seria incapaz de passar por tamanha provação. Até porque os desafios da sua não fé lhe facilitam a tarefa.

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