14.4.06

Bodo pascal 2006: Internet em excesso é pecado

A hierarquia eclesiástica tinha que se fazer notar em época tão importante para os crentes. Tinha que enviar uma mensagem para fidelizar os devotos. Aproveitando o evento pascal, quando as ovelhas do rebanho estão mais sensíveis aos chamamentos da igreja, do Vaticano veio a prédica para formatar o pensamento dos fiéis: Internet é pecado. Regresso à notícia. Verifico que o título é uma simplificação da mensagem de um cardeal norte-americano. O que o cura quis dizer é que tempo a mais na Internet (como à frente da televisão) é pecado.

Primeiro, a retórica do pecado. Diria, a opressão da igreja em todo o seu esplendor. Uma igreja que manieta a consciência de temerosos crentes. Uma fé pelo medo. A finalidade última – a ascensão ao reino celestial – pode estar comprometida. No momento da contabilidade final, quando no passivo forem pesados os pecados e no activo contados os actos enaltecidos por anjos e santos, a condenação à via-sacra do inferno se a remissão dos pecados não tiver a condescendência do julgador final. Os crentes, saciados de vida e ansiando pela outra dimensão, vão vivendo agrilhoados à vida temerária, com o cutelo do pecado sempre a pesar sobre as suas cabeças. A vida, no catolicismo, é uma persistente camisa-de-forças que tolhe a liberdade pessoal.

Em segundo lugar, os sacerdotes – desde padres a cardeais no alto da hierarquia – semeiam uma cultura de dependência pessoal. Arvoram-se na consciência que os mortais não têm. São uma espécie de semáforo que se acende, no vermelho, quando os limites do admissível são transgredidos. Ajuízam os outros, mas eles são imunes ao julgamento alheio. Dirão, quantas vezes, que são julgados pela entidade divina que representam na terra. Permanecem num estatuto de levitação sobre os que estão fora do sacerdócio. Como se os anos de seminário lhes trouxessem a aura que não está acessível aos demais.

Terceira observação: quando é que um católico interioriza que ultrapassou o limiar do admissível em termos de consumo de Internet? Os cultores da teologia dirão que o pecado é uma medida que respeita a cada pessoa. Que cada mortal tem a liberdade para passar a linha do permitido. Lá está, do permitido por uma ordem que invade a consciência, que impõe comportamentos (a quem presta tributo à religião). Para os católicos que levam a religião a sério, as sanções para pecados irremissíveis são piores que pesadas sanções dos tribunais dos homens.

Volto às interrogações: a partir de que fasquia temporal entra o tempo gasto na Internet na dimensão pecaminosa? Dez minutos, meia hora, uma hora? E toda a informação consultada na Internet tem o mesmo peso quando é chegado o momento de fazer as contas do pecado? Quando alguém consulta coisas fúteis na Internet, pode encontrar medida de compensação dedicando algum tempo a informação religiosa, que passa uma esponja pelas heréticas tarefas?

A igreja católica persiste na teimosia de moldar comportamentos. Não se pode arrogar à condição de igreja da liberdade, pelos espartilhos que impõe aos fiéis. A hierarquia eclesiástica tem sempre uma palavra a dizer quando estão em causa comportamentos que mexem com a consciência individual. Ainda não compreendeu que se trata da consciência de cada indivíduo. Por mais que queira fazer da multidão de crentes um rebanho indiferenciado, fala mais alto o jugo da individualidade que impede a padronização de atitudes. É uma igreja que teima em afirmar um clima de subtil terror mental: o respeito pelos dogmas, ou o pecado irremissível barrando as portas do céu prometido.

Contaram-me que numa freguesia (ou devo dizer paróquia?) de Ponte de Lima, onde as tradições pascais estão profundamente enraizadas, o padre avisou que a visita de páscoa aos lares dos paroquianos será paga a peso de ouro: um dia de trabalho a cada família visitada. Exorbitante é o dízimo! O padre sabe que as pessoas, umbilicalmente ligadas à tradição, não se importam de pagar astronómica quantia. É pegar ou largar. Em meios pequenos, sabe-se logo quem abriu as portas de casa ao cortejo pascal e não respeitou o dízimo. É meio caminho andado para o dedo apontado pelos vizinhos, na denúncia certeira do padre da aldeia. Se forem visitadas algumas centenas de famílias, é grande o pecúlio do padre em dia de páscoa.

O episódio desmente o que a igreja insiste em veicular: que ela é a igreja dos pobres. Pelo contrário, a igreja ainda não entrou no tempo do socialismo. Devia ter aprendido que a modernidade é tirar aos ricos para dar aos pobres. Afinal os curas ainda não perceberam que Cristo foi o primeiro marxista. Se o padre daquela freguesia de Ponte de Lima cobra um dia de salário a todas as famílias, está a pedir um sacrifício relativamente maior aos menos endinheirados, para quem um dia de salário custa mais a ganhar do que aos mais afortunados.

A páscoa tem um preço exorbitante. E viola a Constituição da República Portuguesa.

1 comentário:

Anónimo disse...

O padre está a servir a comunidade dos crentes e desta só faz parte quem quer.

Já agora, o pagamento não poderia ser mais democrático, quem recebe mais paga mais.

Mas deve ser difícil, para quem apenas observa no pedestal do preconceito, compreender...