Admirado ficaria se a inauguração do casino de Lisboa não tivesse levantado um coro de protestos. Têm origem nos quadrantes do costume: sectores que tanto gritam pela liberdade, tanto lutaram por derrotar a ditadura, e que, no entanto, se esquecem de praticar a tolerância em relação a ideias e formas de vida diferentes das que defendem; também de outros sectores, mais dados aos esoterismos, partiram críticas enfurecidas porque um casino é o zénite da alienação da pessoa.
O jogo não me diz nada (para além dos quatro euros semanais que gasto no totoloto, na vã esperança do enriquecimento fácil…). Entrei um punhado de vezes em casinos, sempre no bingo. Uma vez acompanhei um amigo que quis torrar “uns tostões” nas slot machines. Em meia hora torrou bem mais que uns tostões. Percebi que as slot machines são devoradoras de moedas. E observei o comportamento viciante de alguns jogadores, olhos esbugalhados na máquina, como se mais nada existisse para além dele, jogador compulsivo, e a máquina que ia devorando as moedas.
São conhecidas as histórias de fortunas desbaratadas no vício do jogo. E histórias, mais dramáticas, de pessoas sem fortuna que perdem os poucos haveres numa mesa de jogo. Um vício, como qualquer outro. O que me parece lamentável é o desfile dos penhores da consciência colectiva. Denunciam o jogo, porque é um alçapão para incautos que entram cegados pelo néon da fortuna e saem acabrunhados ao cabo de mais uma noite de insucesso, de fortuna adiada – sempre adiada. Os novos sacerdotes da moralidade colectiva esquecem-se do aspecto mais importante: do livre arbítrio que cada pessoa dispõe. Enquanto os viciados no jogo não virem um tribunal declarar a sua inabilitação por prodigalidade, quem pode julgar os comportamentos alheios?
Os detractores de casinos alistados no folclore esotérico são curiosos fenómenos de um lirismo saloio, uma fauna que vive no mundo errado, encerrados no espartilho de um mundo imaginário que só existe dentro das suas cabeças. Há dias, uma opinadora do Primeiro de Janeiro fazia escorrer tinta sobre a pecaminosa frequência de casinos. Uma nova espécie de metafísica dos costumes, que passa ao lado de cânones religiosos, mas que não hesita em apontar o caminho certo para a redenção humana. Os casinos alienam a pessoa. Exaurem a espiritualidade dos Homens. São mais um tributo ao desvario da materialização da espécie. Nos casinos, os Homens entregam-se aos valores materiais, na despersonalização dos seres imputada aos demoníacos casinos.
Podemos opinar livremente. Podemos não gostar de certa actividade. Eu não acho piada ao curling, desporto de Inverno com direito a entrada nos jogos olímpicos, onde os praticantes esfregam furiosamente um disco que desliza numa pista de gelo. Ou posso achar a astrologia um embuste. Procuro respeitar os que se excitam com o curling e os que norteiam a sua vida em função dos sinais enviados pelos astros. Não admito a extinção do curling ou que os astrólogos devam ser perseguidos até à extinção. Ao ler os manifestos exacerbados dos esotéricos adversários do casino de Lisboa, fico com a impressão que não desdenhariam a hipótese (acaso o poder lhes caísse nas mãos) de encerrar esse e todos os demais casinos.
Em nome da suposta moralidade que querem impor, sacerdotes impregnados da pureza ideológica e cultores de esoterismos avulsos não percebem que invadem a esfera individual. Qual é a superioridade (moral, intelectual?) para criticarem quem se encosta com assiduidade nas cadeiras dos casinos? Acaso sabem que o dinheiro torrado apenas pertence a quem o gasta? Com certeza que os sacerdotes da nova moralidade não aceitariam intrusões, viessem de onde viessem, discutindo a forma como eles gastam os seus rendimentos. Eles, todavia, afadigam-se em denunciar as pecaminosas maneiras de gastar dinheiro: no jogo, no tabaco, na prostituição, em automóveis de ostentação, em jóias de vaidade, em bilhetes para jogos de futebol, etc.
E dou comigo a pensar: terá sido para isto que se fez o 25 de Abril, uma revolução de liberdade? Sinto que é uma liberdade condicionada, uma liberdade que tem que passar o crivo dos sacerdotes da moralidade correcta. Ora, isto é tudo menos liberdade. Nunca imaginei que pudesse estar de acordo com Vasco Lourenço: a liberdade prometida pela revolução de Abril ainda está por cumprir. Não basta a mirífica liberdade de escolher quem governa. Esse é só um exercício sazonal de liberdade.
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