Continua a sanha persecutória. A brigada dos costumes persiste na inflexível caçada aos maus hábitos. Pelo meio, discursos moralistas apontam o dedo ao imperativo da saúde pública, o pretexto para todas as proibições e mais algumas sobre o nefando vício do tabaco. É um exercício apelativo para os socialistas de consumo doméstico: gostam muito de intervir, legislar, proibir, conduzir as massas pelo caminho recomendável, como se fossem os pastores que apascentam um rebanho que se deseja ordenado. A palavra de ordem é esta: intrometer na esfera individual, com a desculpa do devir colectivo que asfixia as tentações individuais.
Não sei se o exemplo vem de Espanha. Consta que do lado de lá existe a lei mais repressora para quem teima em fumar. Uma lei com a chancela socialista de Zapatero. Desconheço se funciona a irmandade ideológica, o selo da internacional socialista, que forçou o primeiro-ministro deste país a dar ordens para se produzir legislação de idêntico calibre. A proposta é o nirvana para os sacerdotes do anti-tabagismo: a proibição de fumar em todos os locais públicos que não estejam ao ar livre. Espera-se que o primeiro-ministro deste país não seja apanhado na mesma esparrela do seu congénere do lado de lá: em desarmonia com a lei, apanhado a fumar no seu próprio gabinete…
Compreendo que haja maneiras diferentes de encarar os problemas. Compreendo que certos sectores desconfiem da bondade dos indivíduos, isoladamente considerados, e apostem tudo na superioridade do colectivo. Para eles, é a sociedade que corrige os vícios do indivíduo. Descrêem da responsabilidade individual. Desfraldam a bandeira da responsabilidade colectiva, a única forma de meter os indivíduos relapsos nos eixos do comportamento idealizado. É visão triunfante nos dias que correm. Com um governo socialista em acção, esta visão encontra o seu zénite.
É o contraste entre responsabilidade individual e responsabilidade social que está em causa. A responsabilidade social é uma pedagogia à força, imposta por decreto. Mais uma acto de exibicionismo gratuito das autoridades, mostrando a irresponsabilidade de todas as pessoas que continuam a fumar. Ao mesmo tempo aproveitam para exibir o autoritarismo do Estado. É através destes proibicionismos que o todo asfixia a vontade individual. O indivíduo é levado a diluir-se no todo, descaracterizando-se, tornando o todo cada vez mais homogéneo. Intrigante é ver como os que protestam contra o “pensamento único” se alistam entre os defensores da purificação forçada dos tabagistas.
Não sou fumador. Em certas circunstâncias, o fumo do tabaco incomoda-me. Todavia, acredito na responsabilidade individual dos fumadores. Poderei ser ingénuo, porque continuamos a ver fumadores em restaurantes que se marimbam para a refeição do vizinho. Poderá ser distracção, ou apenas puro egoísmo. À responsabilidade individual de uns contrapõe-se a responsabilidade individual de outros. Acaso alguém esteja incomodado à mesa pelo fumo soltado do lado, cumpre-lhe pedir ao fumador que apague o cigarro. Vou levar a ingenuidade mais longe. É nesta forma de civismo em que acredito: no civismo que emerge das relações descomprometidas entre pessoas livres, sem a tutela da pedagogia por decreto produzida por burocratas atafulhados em gabinetes sombrios, longe do contacto com pessoas reais.
Gostava de ver alguém denunciar a hipocrisia dos governos que perseguem o vício do tabaco. Porque o tabaco é uma generosa fonte de receita para os cofres públicos: pelos impostos que os tabagistas pagam de cada vez que compram um maço de cigarros; e pelos impostos que o Estado vai buscar às imensamente lucrativas actividades das empresas que fabricam tabaco. Para quem professa as virtudes da moral, esta hipocrisia é uma armadilha. As autoridades só se podem desfazer da encomenda armadilhada se tiverem a ousadia de despromover o tabaco à categoria dos bens ilícitos. Adivinhe-se porque não há coragem para levar a proibição tão longe…
Descobri a verdadeira intenção do governo. Como vai ser proibido fumar em restaurantes, bares, discotecas, etc., exige-se a fiscalização da lei nos largos milhares de estabelecimentos espalhados pelo território. Agora compreendo porque Sócrates prometeu criar 150.000 postos de trabalho. Estava a pensar nas brigadas de fiscais que vão ser criadas para vigiar o respeito da lei anti-tabagista. Ou isso, ou a hipótese mais sombria: Sócrates acredita no poder de delação de cidadãos íntegros e respeitadores da lei. Serão eles os fiscais que actuam de graça, denunciando os estabelecimentos onde se continuar a fumar. Ora sempre me ensinaram que a delação é coisa feia. Era típica do Estado Novo.
Sem comentários:
Enviar um comentário