5.4.06

Bizarro ao quadrado: os homossexuais não podiam dar sangue

Vamos lá ver se percebi: há dias li que agora os homossexuais já não estão impossibilitados de dar sangue. Presume-se que antes deste agora isso era uma impossibilidade. É bom saber, ainda que tardiamente, o estado deplorável da sociedade que somos. Quanto mais não seja pela gratificação de saber que a bizarria foi varrida do mapa.

Por um momento regresso ao passado, ao tempo em que homossexuais estavam proibidos de dar sangue. Tento perceber a opção de quem assim legislou. Que somos uma sociedade conservadora em matéria de costumes, não é novidade. Que praticamos retórica inconsequente, não condizente com os actos sintonizados em sentido diferente da retórica, também não é coisa inovadora de concluir. Há um esforço para reconhecer direitos básicos aos homossexuais – quanto mais não seja, o direito de assumir uma opção sexual diferente. É o próprio Estado que vai saindo do espartilho da sociedade conservadora, sancionando a aspiração de liberdade que não pode ser negada a homossexuais – como é consentida a heterossexuais, como deve ser permitida a bissexuais, ou a assexuadas personagens que gravitam no celibato. É enigmático como o mesmo Estado que se cola ao politicamente correcto resvale para estas distracções, barrando o caminho das salas de doação de sangue a quem seja homossexual.

Algumas perplexidades vêm à superfície. Primeira, perceber a discriminação dos homossexuais enquanto dadores de sangue. Acho que já percebi: o sangue dos homossexuais é de fraca qualidade. Ou isso, ou então sempre se confirma uma tese tão grata à igreja católica: a homossexualidade é uma doença, ou pelo menos um desvio de comportamento. Ora quem padece de maleitas não preenche as condições para dar sangue. Impõe-se a cautela, não vá a ciência provar que a “doença” da homossexualidade se transmite via transfusão sanguínea.

Segunda perplexidade: e se um homossexual não se confessar enquanto tal, aí já pode dar sangue. Estará a cometer uma ilegalidade? Sim e não ao mesmo tempo. Não, ele não é obrigado a gritar de pulmões abertos, no meio do hospital, “eu sou gay”. Sim, cometia uma ilegalidade porque dava sangue quando a magnífica lei o impedia de praticar semelhante acto filantrópico. A ambiguidade podia criar situações de incerteza. Se persistisse a bizarra medida que agora foi eliminada, propunha uma solução: cadastrar os homossexuais, como os nazis faziam aos judeus, a quem pregavam uma cruz no vestuário; ou registar os dadores de sangue, que seriam obrigados a responder a uma pergunta sacramental – é homossexual?

Terceira perplexidade: imaginar que uma das mentes iluminadas (que decidiu colocar em letra da lei a impossibilidade dos homossexuais serem dadores de sangue) teve um acidente, está na urgência do hospital a meio de uma cirurgia que lhe tenta salvar a vida, necessita de uma transfusão sanguínea. Só por hipótese académica, o seu tipo sanguíneo é muito raro. Por uma notável coincidência, naquele hospital e naquele momento encontrava-se um homossexual assumido que coincide nesse grupo sanguíneo. Deixa-se morrer tão iluminada figura, só para respeitar a lei? Se o pessoal médico for zeloso ao ponto de não incomodar o homossexual, poderá ser acusado de negligência? E se acaso o homossexual quiser servir uma fria vingança, recusando-se a oferecer uma veia à agulha para retirar o sangue necessário para a vítima, poderá ser incriminado por nada ter feito para salvar a vida de figura tão importante?

A diarreia legislativa de sucessivos governos, de sucessivas levas de burocratas que querem, a todo o transe, deixar a sua marca pessoal, é um cadafalso. Fazer leis absurdas traz o Estado para o domínio do surreal. Boas novas para o anarquista. Pois que os governos continuem pejados de burocratas que se auto-investem na divina condição de iluminados, que continuem a deliciar-nos com pérolas como a que impedia os homossexuais de serem dadores de sangue. E para que daqui não haja apenas maledicência e crítica destrutiva, o epílogo louva o governo pela sensatez de corrigir esta boutade.

(Já era tempo deste governo acertar numa medida.)

Sem comentários: