17.4.06

Os coitadinhos

Não são os mendigos que erram pelas ruas, com o estômago vazio e a vida desapiedada de horizontes. Nem os incautos do desamor, de encontro marcado com a solidão. Não são as atormentadas vidas mergulhadas em asfixiantes dilemas da existência. Ou pessoas causticadas pelo sacrifício, de que as rugas profundas e um olhar tristonho e perdido no horizonte são o espelho vivo. Ou, se calhar, todos são a imagem da auto-comiseração.

Há quem goste de o fazer: papel de vítima, aproveitando a mais pequena oportunidade para decretar tempestade em copo de água. Dão valor a pequenos percalços, pequenos nadas que num ápice se transformam num drama que cativa a atenção alheia. À espera da primeira oportunidade para serem os alvos da piedade alheia. Sentem-se bem no papel, ao saberem que os outros, por momentos apaziguados com a sua atormentada existência, dedicam uns instantes a mostrar comiseração. Há quem goste de se saber coitado na maneira de ver dos outros que o rodeiam.

As vítimas de ocasião tranquilizam-se quando percebem que a tormenta destruiu o seu bem-estar. Haverá o preço a pagar pelos danos, o tempo que medeia até o bem-estar se recompor. Até lá, os afagos de comiseração moralizam. É uma espécie de solidariedade negativa – ainda que sejamos educados para a solidariedade sem adjectivação. O mal não está em exercer piedade. Está no embuste que convoca o exercício dessa piedade. Como numa lógica de roda dentada, todos andamos de braço dado no miserabilismo que em momentos nos toca. Agora uns, as vítimas na calha para a choradeira das carpideiras de serviço, sabendo que algures no tempo futuro quem carpe as mágoas de hoje será investido no papel de vítima. Somos reciprocamente solidários com a adversidade alheia, um investimento no amanhã em que a adversidade há-de bater à nossa porta. Num gigantesco movimento, uma mão asfixiante que nos empurra – fautores da piedade mais os seus alvos – para uma deprimida e descolorida existência.

Há dias contaram-me um episódio, durante um velório, que se passou com o familiar do falecido. Bem cedo pela manhã, quando chegou ao local do velório, só lá estava um desconhecido. Ao ver o familiar do morto aproximar-se, o desconhecido desfez-se em condolências e votos de coragem. Quis ser o ombro amigo de alguém que jamais tinha visto: “agora há que ir em frente. Coragem! É a vida”. E sumiu-se com uma lágrima não disfarçada ao canto do olho. Sem perceber que a última frase continha em si a negação daquele momento. Velava-se um morto, como concluir o voto de coragem com o despropositado “é a vida”? Não é a vida, era o sinal da morte que ali se curava. O profissional dos velórios entretanto sumiu sem mais dar sinal, esperando que o dia seguinte, os dias seguintes, trouxessem mais cadáveres entregues ao caixão no ritual da derradeira homenagem.

O clamor pela compaixão alheia é a imagem do amor-próprio ausente. Houve quem dissesse que preferia ser odiado a saber que os outros tinham pena de si. Haverá nesta afirmação um excesso de orgulho estéril. Descontando essa exuberância de sentimentos, há algo de verdadeiro no predicamento. Mesmo quando a desgraça bateu à porta do homenageado pela piedade colectiva, muito mais quando damos de caras com os profissionais da lamentação, que aproveitam a onda sedativa de indulgência para tapar as fraquezas com a peneira da piedade alheia.

Ainda compreendo o clamor pela comiseração quando a dor atinge profundamente alguém, por perda de um ente querido ou por desdita maior que traga essa pessoa condoída. Já acho deplorável que muita gente queira um afago piedoso quando as desgraças são sobrevalorizadas. Apenas mais uma manifestação da falta de auto-estima, o prémio à mediocridade distribuído por quem choraminga pelos cantos sem se esforçar por mudar o rumo de vida.

Falta-me perceber se a tendência para sermos coitadinhos faz parte da essência humana ou é idiossincrasia de um povo. Quando me recordo das velhinhas que trazem luto até ao fim dos seus dias porque perderam o marido há largos anos, quando penso na dor lancinante e duradoura que um luto provoca, na antítese da frieza com que os povos mais a norte lidam com a partida de um ente querido, desconfio que se trata de idiossincrasia. A entrega sombria à morte, ou a negação da vida sempre curta chorada sem fim no fado da nossa existência.

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