Casimiro sai da obra ao fim de mais uma cansativa jorna. Ainda vem imundo, as mãos sujas do cimento amassado, o cabelo desgrenhado e áspero – naquele dia estava vento e a poeira do cimento andava à solta, encontrando pousio nos cabelos dos trolhas. Casimiro monta na sua Famel Zundapp. A mota está um mimo. Devota-lhe mais carinho que à mulher e aos dois filhos. Encera-a mais vezes que os seus sapatos. Casimiro pode aparentar o que é, na descuidada imagem de quem está “estabelecido na vida” (tradução: família feita), mas a motoreta é o orgulho que o mantém esclarecido – isso e o grandioso Benfica, mas só quando as vitórias marcam encontro com o “maior clube do mundo”.
Monta na Zundapp, de regresso a casa. Coloca o capacete – ou o esboço de capacete que, contrariado, lhe traz incómodo na viagem até ao lar. Nem sequer se pode chamar capacete. Para falar com verdade, aquilo parece um penico: um semi-círculo que protege a parte superior da cabeça, pois a nuca vai apenas com a protecção de uma napa mal amanhada. Está tudo estudado, cientificamente. Se ele tiver um acidente, as hipóteses de bater com a nuca são escassas. Aliás, se Casimiro pudesse mandar nos destinos do país, das primeiras decisões que tomava era proibir a obrigação do uso do capacete para os motociclistas. É um incómodo desnecessário.
No caminho para casa, paragem obrigatória na tasca. Sempre se encurta a presença no lar – quanto menos tempo aturar a sua Segismunda, mais o Cláudio Rafael e a Sónia Carina (ler como se o segundo nome levasse acento no primeiro “a” – “Cárina”), a prole com oito e três anos respectivamente, quanto menos tempo os aturar depois de um cansativo dia de trabalho, melhor. A companhia dos compinchas dos copos é preferível. Ao menos pode arrotar sem levar com o ar enojado de Segismunda. E todos apreciam, lá na tasca, a curvilínea apresentadora de um concurso de fim de tarde que passa num canal de televisão (diz-se “telvisão”), enquanto tragam os “copos de três” de tinto do Bombarral e degustam umas sandes de couratos. O vernáculo é escorreito. As promessas de façanhas sexuais são dirigidas para o ecrã, ao bom estilo do cão que ladra mas não morde. Uma liturgia colectiva que se repete, dia após dia.
Chega a casa quando o jantar começa a esfriar dentro dos tachos e da frigideira. Não consente protestos da Segismunda, ou a pesada mão direita levanta-se, brusca, e cai sobre a infeliz consorte. Como ela já conhece os predicados do esposo, cala-se a bem da integridade física. Casimiro sabe que no matrimónio o homem manda e a mulher nasceu para ser obediente. Senta-se à mesa ainda imerso na imundície da obra. Nem sequer lavar as mãos preciso é. Devora a pratada que a dedicada mulher lhe serve. Acompanhada por uma garrafa de tinto carrascão que veio lá da aldeia – “vinho avariado”, como ouve numa reportagem da televisão, acenando com a cabeça em tom de reprovação, dizendo: “estes maricas têm a mania das higienes. Ainda nos hão-de matar com a mania das higienes”. Cláudio Rafael mostrava resistência em comer o que lhe estava destinado, fazendo orelhas moucas aos apelos da paciente mãe. Casimiro chegou a mão direita atrás e lançou-a com fragor na cara do petiz. As palavras vieram depois da estalada: “come minha besta, ou apanhas outra igual”.
Fim do jantar. Casimiro levanta-se da mesa assim que acaba de comer. Não lhe interessa que o resto do agregado ainda esteja a meio da refeição. Levantar a mesa é para a mulher – as lides da casa são coisas de mulheres. Homem que se preze não se dedica a essas mariquices. Esse é um dos mandamentos repetidos até à exaustão na sua tertúlia, por entre o fumo dos cigarros e o discernimento toldado pelo álcool abundante. Vai para a sala, descalça os sapatos e estende os pés em cima da mesa de centro. O farto repasto começa a dar frutos: a flatulência dá notícias, com sonoros trovões que empestam a sala com um cheiro nauseabundo. O filho mais velho entra na sala e, desprevenido, descai-se: “que cheiro!”. O pressuroso pai olha-o de lado e ameaça: “vê lá se queres mais do que comeste ao jantar”.
É dia de aniversário da prima Tânia Vanessa. Apesar do cansaço, não se regateia uma festança com mais uns comes e uns bebes valentes. Até porque depois do bolo de aniversário há espumante – coisa só para dia de festa. Viaja o agregado na motoreta, conduzido por Casimiro já etilizado. Não há problema. Ele acha que conduz melhor depois de emborcar uns copos. Capacetes, só para os adultos. Os petizes vão ensanduichados entre os progenitores. Sem capacetes, pois na sua imensa sapiência, Casimiro sabe que não há hipóteses de acidente. E mesmo que houvesse, as crianças iam protegidas ao estarem emparedadas entre o pai e a mãe. Nunca seriam projectadas, nem caíram com estrépito no chão – para quê pôr-lhes capacetes na cabeça?
Regressam à meia-noite. Com a consciência de um motociclista que conduz a família com uma taxa de alcoolémia que dava prisão.
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