Lá vai o cortejo de religiões, com os seus (mentalmente) anafados sacerdotes, na espiral rumo ao escuro fundo do poço. De onde não há saída possível – a menos que queiramos acreditar, como se fosse nova fé a sobrepor-se à irracionalidade das crenças diversas, que do caos se ergue uma frondosa vereda para a humanidade. Lá vamos atiçados às profecias, às doutrinas incontestáveis, ao ódio atirado de um lado para o outro. Querem-nos convencer que somos grupos contra grupos, e todos fazemos parte de um grupo. Sem escapatória possível.
Jogam-se os fundamentalismos num lamentável campeonato onde campeia a ignorância. Com os fundamentalismos levanta-se a violência inaudita. Violência física e violência verbal. Aos desafios de uma violência sucedem-se respostas do mesmo calibre, ainda que deslocadas para outro nível. À violência assassina e hipócrita segue-se a violência das armas, porque não retaliar é capitular. Com o complemento da violência retórica, que irrompe com intensidade dos dois lados da barricada. A discussão, interminável e perigosa, é uma deriva para o ensandecimento colectivo. Uma estaca bem afiada com pingos da ignorância que asfixia o discernimento.
Uns pedem sangue e semeiam sangue entre inocentes vítimas. Do lado dos ofendidos, grita-se o incómodo de quem se sente injustiçado, com razão. A solução é uma só: cavalgar na violência. Fazendo-se o jogo tão desejado pelos violentos cegados pela sede de despedaçar a tolerância mestra da civilização ocidental. Sem perceberem como se estatelam numa armadilha, os sedentos de vingança, os que caucionam a perseguição infindável aos que espalham terror, descem ao nível dos que combatem. Vão adensando o ritmo da incerteza, sem convencerem que as acções de policiamento global trazem resultados. Sem entrar na órbita dos loucos que se perdem de amores por absurdas teorias conspirativas, que mensagem reter do relatório de dezasseis agências secretas dos Estados Unidos, que concluem que a “guerra ao terrorismo” aumentou as probabilidades de ataques terroristas?
Há sinais perturbadores neste arremedo de violência que vai aquecendo em lume brando. Um túnel sem luz ao fundo. Apenas a escuridão total, sem saber o que nos espera quando o final do túnel chegar. E há a pressão para cada indivíduo se considerar parte do grupo, de um dos grupos que se digladiam em estupidez perene. Sem haver lugar às dissidências grupais aos que não se revêem nos chicotes dogmáticos. A ousadia para não engrossar a matilha é pecado capital que, de um dos lados dos fundamentalismos, traz a lapidação ou o enforcamento; do outro lado, dá lugar à incompreensão, arrostando o rótulo de amigos do inimigo ou correndo o risco de caírem no estigma da capitulação ao inimigo.
Inquieta-me a deriva de certos fundamentalistas do lado de cá. Têm razão quando se indignam contra o fundamentalismo do lado de lá, contra a violência carregada de hipocrisia. Perdem a razão quando, num assomo irracional, começam a falar a mesma linguagem. É nessa altura que a virtude dos seus valores se abre a excepções. A tolerância abre brechas: se não formos intolerantes com os que são intolerantes com o nosso modo de vida, eles, o inimigo, acabarão por minar a nossa forma de vida. Apologética profecia, tão útil para quem nela encontra um pretexto para mostrar musculada força. À superioridade civilizacional há-de se adicionar a superioridade pela força. O mundo numa sublime imagem!
Os tão ofendidos do lá de cá entregam-se a uma guerra sem quartel contra o fundamentalismo do outro lado. Desnorteiam-se pelo caminho. Perdem-se na linguagem e na prática dos que criticam com razão. Perdendo a razão quando rivalizam na linguagem entontecida, empenhando-se num fundamentalismo que rivaliza com o fundamentalismo que combatem. É vê-los a dissertar sobre as virtudes dos valores ocidentais, tolerância, valor da vida humana, etc; e a negar esses valores quando se emproam centuriões sagrados dos valores ofendidos pelos islâmicos exacerbados. Aqui são contra a pena de morte; no campo de batalha aceitam que sejam estropiadas vidas humanas, inocentes ou culpadas, com a mesma frieza de quem bebe um café.
Neste mundo vertiginoso, tudo se globaliza. Mesmo a ignorância. Tudo se contagia, especialmente o grotesco. Na minha inocência, acreditava que a melhor maneira de nos distinguirmos de quem repudiamos é estarmos nos seus antípodas. A lição que nos entra olhos dentro é oposta: só os vergaremos à derrota se falarmos na sua linguagem, se pusermos em prática o seu código de valores. Nesta altura, já pouco restará da aclamada civilização ocidental para aspergir pelos quatro cantos do mundo. Talvez os derrotemos pela força das armas; sem se perceber que, então, eles nos terão derrotado silenciosamente, porque nos inquinaram com os seus valores que são a antítese dos nossos.
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