19.10.06

Da mentira em política


O que acontece quando mentimos no trabalho? Pensemos numa mentira das grandes, daquelas que desgostam o chefe, ao ponto de se turvar a relação profissional. Vamos até supor que a mentira é tão grave que o chefe instaura um processo disciplinar. Cenário imaginado: alguns dias de falta ao trabalho com a desculpa de uma doença que fez acamar. A verdade seria outra: um colega de trabalho – que, para desdita do aldrabão, nutria uma antipatia doentia – teria visto o mentiroso de barriga para o ar numa praia do sul de Espanha. Adivinha-se o desfecho: a mentira tão descarada iria abrir a porta da saída, o convite ao desemprego. A mentira não compensou.

Continuemos a romancear. O nosso mentiroso encontrou supremo incentivo para a patranha. Uma escultural e jovem mulher que o faria recuar à juventude impulsiva. Tentara-se por uns idílicos dias de vida paralela. Lá em casa, teria dito à consorte legítima que ia em trabalho para o sul de Espanha. Umas reuniões muito importantes – para a empresa e para ele; corresse tudo bem, fechassem os negócios esperados e uma promoção estaria à espera. Para seu azar, o denunciante da mentira teria uma irmã que era amiga do peito de uma prima da filha mais velha do ardiloso. De palavra em palavra, dias depois do despedimento a bomba rebentara lá em casa. A mulher em prantos, incrédula por o amado marido ter sido capaz da traição. Esperavam-no algumas malas com roupas à porta de casa. E a voz condoída da mulher: “terás notícias do meu advogado”. A mentira não compensara.

Estouvado, prometera uma semana de sonho à oportunista amante. Hotel de cinco estrelas, restaurantes dignos da realeza árabe que se passeia pelo sul de Espanha. Na despedida da frenética semana que lhe trouxera uns resíduos de extravagante vida paralela, as hormonas frementes conduziram-no a uma ourivesaria. Havia que presentear a jovem amante com uma esplendorosa peça de joalharia. Todos os luxos pagos com o cartão de crédito. Tinha folga orçamental, prometida que estava uma promoção que traria um generoso aumento de proventos. O despedimento que puniu a mentira deixou-o desprevenido. Sem aumento, sem sequer ter um rendimento, e tanto dinheiro para pagar no mês seguinte quando chegasse a factura do cartão de crédito. Estava desgraçado. Só então percebera: o abismo da mentira colocara-o no cadafalso.

Mas há mentiras contadas por mentirosos compulsivos que passam incólumes. Andam a mentir meses a fio, a fazer promessas repetidas à exaustão – de que farão isto ou aquilo, ou que nunca farão aqueloutro. Chega o dia em que anunciam, com a exigível circunspecção, que as promessas tantas vezes solenemente marteladas eram mentiras. As acções desmentem as promessas. E surgem com desfaçatez a anunciar a mentira. Como se ela não fosse sequer mentira. Algumas vezes têm o desaforo de negar que tenham feito aquela promessa. Os registos do que disseram e escreveram são revisitados com a ajuda da retórica distorcida, que procura dar um novo sentido ao afirmado no passado. É a mentira elevada ao quadrado.

Estes mentirosos compulsivos mentem e prosseguem o seu caminho, orgulhosos com o que fazem, ainda que defraudem um público que os colocou no poder mediante as promessas agora incumpridas. É o expoente máximo da mentira, a deslegitimação de quem assim se comporta. Com a gravidade de serem pessoas que têm o nosso destino nas mãos. Às vezes contam com o beneplácito de uma imprensa amestrada, que assobia para o ar enquanto o cortejo de mentiras passa debaixo dos seus olhos. Para seu desgosto, a sociedade civil não adormece. Há quem esteja vigilante e denuncie a mentira que devia destruir a base de confiança entre os governantes mentirosos e o público, sobretudo aquele público que neles depositou a confiança.

Lamentavelmente, na política a mentira compensa. Não há despedimentos dos mentirosos, tão apegados ao poder que nem com mil descaradas mentiras têm a hombridade de se afastarem. Recusam-se a admitir a mentira, num redobrar de desaforo que repugna. Um mandato de confiança, que leva à vitória em eleições, liquefaz-se com a sucessão de mentiras. O que traz outras interrogações: quando prometiam teriam consciência que essas eram promessas faraónicas, impossíveis de cumprir? Nesse caso, a gravidade da mentira cresce de intensidade: mentiam à partida, taparam o sol com a peneira aos crédulos que os escolheram. Outra possibilidade: só mais tarde perceberam que era impossível cumprir as promessas? Sintoma de irresponsabilidade, de mão dada com a incompetência que mostra o desmerecimento para governar.

O contexto para o final: um primeiro-ministro triunfante, sempre senhor das suas certezas, arrogante para quem o ousa desafiar, que repetiu à exaustão: as SCUT nunca teriam portagens. Repetiu-o antes de ser eleito, fez disso bandeira da campanha eleitoral. Repetiu-o várias vezes já na veste de primeiro-ministro. Agora que o seu enorme ego se apraz com a anestesia colectiva revelada pelas sondagens (a sua imagem é excelente, vá-se lá perceber porquê), há que aproveitar o embalo e descaradamente mentir: as SCUT em volta do Porto irão ter o ónus das portagens. Curiosamente, não vi nenhum amestrado jornalista a incomodar sua excelência com a pergunta sacramental: porque mentiu, senhor primeiro-ministro?

1 comentário:

Rui Miguel Ribeiro disse...

Estás a ver? Isto só reforça o que escrevi no meu blog sobre o PM da Hungria. Bem sei que lá foi muito mais descarado e gritante, mas aqui tudo passa. Ainda por cima a imprensa é tradicionalmente generosa e macia com os governos de esquerda (ou provenientes da esquerda).