Os que mordem pela calada é que vão deste mundo com a barriga cheia. Eles, que pregam a moral casta, têm uma vida secreta de entrega aos prazeres carnais, à devassidão que poucos comuns mortais tiveram a oportunidade de provar. Quantas as histórias de padres da província profunda que, aproveitando a obediência de um ordeiro rebanho de devotos, foram debicando aqui e ali? Um harém resguardado na intimidade entre o cura e cada senhora apanhada no leito sacerdotal. Uma cumplicidade alimentada no pudor das devotas que se deixavam seduzir pelas palavras tentadoras do senhor padre.
Salazar construiu uma imagem de recato, solidão, entrega total ao serviço público. Para o ditador, a causa nacional era um sacerdócio inevitável. Uma dedicação quase religiosa, para alguém que foi educado na rigidez mental dos colégios de padres. O sacrifício à governação prolongou o celibato. Como prova de que temos dívidas ainda não saldadas com o longo consulado salazarista, mais de trinta anos após a deposição da ditadura ainda convivemos mal com os fantasmas do regime enterrado numa sepultura hermeticamente selada. Recentemente, mais provas da incomodidade do fantasma de Salazar: estudos sobre o celibato do ditador.
Especula-se que Salazar não era o casto que o Estado Novo celebrizou. Teria uma corte de admiradoras. Já se sabia dos enlevos que Salazar manteve com uma jornalista francesa que, nos anos cinquenta, permaneceu um longo período em Lisboa a propósito de uma entrevista. Outros têm mergulhado nos arquivos para saber se a castidade de Salazar não era um embuste para maquilhar a imagem de um ditador devotado ao sacerdócio sacrificial de governar (com mão de ferro) a lusitânia pátria.
As especulações redobram ao ser recordada a existência do Movimento Nacional de Mulheres que, a propósito do rebelde Humberto Delgado, nasceu “espontaneamente” para jurar fidelidade (canina) ao presidente do Conselho de Ministros. Milhares de cartas recebeu Salazar de senhoras excitadas com as suas façanhas governativas. Dedicadas fadas do lar, casadas, solteiras ou enviuvadas, faziam juras ao timoneiro que lhes dava garantias de aportarem em cais seguro. Salazar não era, para estas senhoras, uma figura paternal. Aparecia-lhes como o marido que não tinham ou que, existindo, estava ausente: o ombro protector, a garantia da segurança do lar estável. Sem o saberem (Salazar e as senhoras que escreviam as comoventes missivas, como é demonstrado por este excerto: “as mulheres lusitanas, sentinelas vigilantes, conseguirão que o sol da felicidade brilhe com todo o seu esplendor no lindo céu de Portugal”), estava ali um ícone sexual.
Dava para uma peça de teatro. A recriação dos anos pujantes do ditador ao leme da grandiosa nação. Um dissimulado arregimentar de voluntárias para visitas secretas ao presidente do Conselho de Ministros. Tão secretas que nem os serviços secretos sabiam da sua existência. Entravam pelas portas dos fundos do Forte de S. Julião. Com véus negros, para não levantar suspeitas. Envergando os véus negros, a certeza que se tratava de um ritual religioso, uma reza a um santo qualquer, ou a sagração de uma data relevante para a igreja católica. Lá dentro, despiam-se do véu negro e do resto, as jovens e menos jovens donzelas prontas a saciarem o ditador. Em nome da pátria, que o bom senso do primeiro-ministro exigia sanidade mental. E se os valorosos soldados haveriam de entregar o peito às balas nas terras africanas, em defesa da grandiloquente pátria ameaçada pelos terroristas negros, no Forte de S. Julião o sexo feminino tecia exercício similar.
Às vezes os tímidos servem-se da timidez para terem o maior proveito. O sexo feminino comisera-se da timidez e, num acto de generosa entrega, desapieda o jovem acanhado da sua vergonha. Só são santos no papel. Rivalizam com os marialvas que se gabam das conquistas anotadas num livro dourado. Só não exibem o másculo garbo do rol das conquistas. Não execram sinais de desconsideração do sexo oposto, como se as conquistas fossem meras coisas que entram no bornal das aquisições. Os envergonhados que sapientemente não se libertam da timidez levam a palma: as donzelas que caem no logro ao menos sentem-se respeitadas. A diferença entre a sensibilidade e a animalidade do trato. E de como a estética (pouco simpática para os envergonhados que sabem seduzir com os atributos espirituais) é derrotada pela timidez subserviente, que os faz exaltar sensibilidade em relação à mulher.
As especulações em torno de Salazar têm um efeito paradoxal: aos esforços de consolidação da imagem sanguinária do ditador opõe-se a imagem ternurenta, cândida, sensível, sedutora do sexo feminino. E ou Salazar padecia de um profundo complexo de Édipo (novas pistas para investigação dos interessados...), ou era um D. Juan reprimido, ou tornou-se ditador a contra-gosto. Um tímido que cai no goto de uma corte infindável de mulheres não pode ser um ditador em potência.
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