23.10.06

Mesquinhez

Não sei se é da espécie humana, ou apenas idiossincrasia da portugalidade. Onde quer que a mesquinhez povoar espíritos, é uma atroz manifestação de pequenez. Faz-me logo lembrar invejosos aperaltados, auto-convencidos que são pilares da moralidade dos outros, a conjecturarem com os seus dedos carnudos e gordurosos. Afivelando juízos sobre a vida alheia. Misturando o que não pode ser misturado – vida pessoal e capacidades profissionais – numa tremenda confusão que sinaliza a pouca inteligência dos mesquinhos.

Há muitas manifestações de mesquinhez. Das que mais me inquietam, a mesquinhez destilada no trabalho. Vem a terreiro comentar facetas proibidas da vida pessoal de alguém, quando o que interessa saber é o valor da pessoa no trabalho que lhe pagam para fazer. Vícios privados são isso mesmo: privados. E se não interferem com o desempenho profissional, não podem os vícios privados – por mais tenebrosos que sejam aos olhos da sacrossanta “moral pública” – apoucar o bom profissional.

Quem se enreda nas teias da mesquinhez nem tem capacidade para discernir o mal que lhe faz: falar do que não devem, quantas vezes não conseguindo disfarçar o despeito, tem um de dois sinónimos. Ou confessam, lá no seu íntimo, que gostariam de ter a coragem de se entregarem nos braços dos dissolutos hábitos que acabam de censurar; ou são tão escassamente inteligentes que não alcançam que, ao entrar na esfera privada dos outros, abrem um precedente que pode ser perigoso para os mesquinhos de serviço: que alguém chafurde na sua vida pessoal. E às vezes os telhados de vidro deixam muita imundície à mostra. É então que a mesquinhez se desmascara. Não bastara nunca ser acto aceitável e descobre-se que os sacerdotes da mesquinhez têm pecadilhos próprios que desautorizam qualquer laivo de moralidade para os outros.

A mesquinhez é toda perfídia. Inveja recalcada. É o juízo dos outros, como se alguma vez houvesse lugar a sancionar vícios privados, néscios ou escandalosos, que os outros revelam, ou por pudor escondem. Esta é a dúvida: será traço típico da portugalidade rasteira, ou atravessa a humanidade? O pouco cosmopolitismo não deixa fazer comparações rigorosas com o estrangeiro por onde passei ao de leve. A experiência é mais loquaz no chão pátrio. Da observação dos nativos destaca-se a mesquinhez como um dos principais estorvos. De braço dado como uma indigência mental que nos remete para a habitual cauda do pelotão, quando chega o momento de tecer comparações com os parceiros da Europa próxima.

A mesquinhez é o binómio da inveja. Por exemplo, quando alguém pavoneia sinais exteriores de riqueza desconhecidos no passado, a sentença lapidar não demora: a origem dos proventos só pode ser ilícita. Soltam-se as desconfianças, feitas acusações, que terá sido um tráfico de droga que enriqueceu subitamente aquela pessoa. Que interessa se essa ostentação é passageira, um mero acesso de ambição desmedida de subir na escala social, nem que seja através de um endividamento para o abismo? Ou que a fortuna escarrapachada na cara dos demais seja uma herança avidamente estourada? Aos invejosos, que muito gostariam de ordenhar o leite de tão laudatória fortuna, custa ver que os abastados do momento passeiam a ostentação diante dos seus olhos.

É por isto que somos pequeninos. Não é a exiguidade do território, o pedaço térreo que nos acantona num cabo da Europa, que justifica a pequenez. É a pequenez mental, um torniquete que desvia as atenções do essencial para o muito acessório (que nem acessório deve ser; a mesquinhez entra no domínio do implausível). O rumo é o de uma maré errante. Altivos e convencidos que somos um juiz superior do comportamento dos outros, esquecemos pecadilhos que nos devolvem à terra. Só para que os sacerdotes da moral alheia, incrustados na malévola mesquinhez, saibam que podem cuspir no ar que o vento, esteja de feição, traz a cuspidela de volta. Tombada sobre eles mesmos.
Então a mesquinhez será, apenas, uma inútil deriva à volta do tempo que é sempre escasso. Só, e nada mais, uma perda de tempo que prolonga a indigência.

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