10.10.06

Pela boca morre o peixe


Há assuntos que os devotos servos do catolicismo beato se deviam escusar a comentar. Não sugiro que lhes seja retirado o direito de opinião, que isso roça o estalinista arbítrio que o lamentável registo histórico não deixa cair no esquecimento. Sugiro, apenas, recato. Que tenham pudor de lançar despautérios para consumo público. Quanto mais não seja, para não se entregarem nos braços do ridículo. (Fico perplexo com esta cândida preocupação com as beatas personagens que trajam sotainas nas suas cabeças. Até parece que estou aqui como substituto de consciências que perdem o norte quando, de sangue fervente, discorrem sobre temas que pisam as suas convicções.)

Ontem, no Público, Mário Pinto era exemplo vivo de como o sangue fervente tolda o discernimento. Talvez sem o desejar, ofereceu de bandeja aos seus rivais “anti-abortistas” o maior dos trunfos para o referendo que se espera lá para Janeiro. Tão patética foi a argumentação usada, tanta a desorientação mostrada. Tanto o afã em denunciar as incoerências dos “anti-abortistas”, que nem deu conta de como caiu nas maiores contradições.

A leitura da prosa captou-me a atenção pela chicana intelectual: “A mim, o que mais me impressiona é a falta de argumentação dos defensores da liberalização do aborto, reduzida propagandisticamente ao argumento grosseiro da propriedade do corpo da mulher e aos riscos de saúde de quem comete o crime forçosamente na clandestinidade. Sempre o absoluto direito de propriedade a servir o egoísmo! E contudo, o aborto é primacialmente a questão da autonomia do filho. Será por isso que sobre o filho não gostam os abortistas de falar?

Primeiro reparo: não sabia que os fiéis seguidores da ortodoxia católica eram agora grandes adversários dos direitos de propriedade. Mário Pinto deixou-se seduzir pelos ventos da colectivização, subitamente saudoso dos idos do PREC onde as nacionalizações eram feitas em nome dos interesses do povo? Há estranhas alianças que se revelam com a passagem do tempo. Ou com o oportunismo das argumentações tresloucadas. Segunda observação: era bom que Mário Pinto percebesse que o feto não tem autonomia, nem vontade própria, enquanto estiver no ventre da mãe. Se os menores de idade não têm capacidade para praticar determinados actos, e essa incapacidade é ultrapassada pela vontade dos progenitores, o mesmo raciocínio rejeita a pergunta de retórica do cronista. Não vejo como pode o feto exteriorizar a sua vontade.

Os nacos de prosa deliciosos sucedem-se: “Esconder, fazer evaporar a vítima do crime, é tão importante que se faz tabu de mostrar as técnicas do aborto e os restos mortais do embrião, do feto abortado. Qualquer pessoa razoável poderá então interrogar-se: mas porque é que se não hão-de mostrar-se as técnicas do aborto? E até os embriões e bebés abortados?” Eis-nos chegados ao domínio do atroz. Porventura aos dedicados servos da causa anti-aborto o macabro desfile de embriões retirados do útero apazigúe a consciência. Porventura por acreditarem que essas imagens lúgubres vão engrossar as suas fileiras. Nem que seja um acto execrável, mostrar fetos cadáveres. Nem que seja espezinhando a dignidade dos mesmos fetos que eram, parágrafos antes, sujeitos de direitos reivindicados pelo cronista. Será Mário Pinto espectador assíduo do lixo que infecta a televisão?

A cereja que embeleza o artigo de opinião estava reservada para o final. Uma saída em grande. Mário Pinto tenta descobrir as razões que levaram a modernidade a ser condescendente com as práticas abortivas. Qual prestidigitador, descobriu a pista para o enigma: um relatório datado de 1974, conhecido como Relatório Kissinger, sobre “as implicações do crescimento da população mundial para a segurança dos Estados Unidos e para os seus interesses nas relações internacionais”. Aqui fica a ilação de Mário Pinto: a voragem abortista que perverte a sociedade ocidental fica-se a dever à “revolução de mentalidade e de cultura, por um lado, e à globalizada campanha internacional contra o crescimento da população por razões de hegemonia geopolítica, por outro lado” (destaque meu). Soltem-se os pontos de exclamação. E os que estão do outro lado da barricada (na questão do aborto) enchem-se de contentamento ao receberem, de braços abertos, Mário Pinto entre a trupe que, sempre de olhos fechados, inculpa os Estados Unidos por todos os males do mundo contemporâneo.

Neste assunto, custa-me estar ao lado das esquerdas folclóricas que já festejam antes do tempo a vitória do referendo agendado. Não gosto de estar mal acompanhado. Mas ao ler o bafiento e intelectualmente desonesto artigo de Mário Pinto, a primeira coisa que me apetece fazer é entrelaçar braços com a esquerda folclórica na primeira manifestação de rua a favor do aborto.

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