Era miúdo. Diziam que tinha jeito para o futebol. Houvesse espaço para o jargão dos catedráticos da bola, dir-se-ia: técnica apurada, cultura táctica acima da média. E, contudo, o acaso quis que se transviasse a carreira a dar pontapés na bola e nos adversários. Porque a adolescência jorrou para a superfície um cocktail explosivo: mau feitio e uma curiosidade intelectual pela desarmonia da ordem, os ingredientes fatais para não suportar injustiças do apito arbitral.
Há mais de vinte anos, os alísios da corrupção no futebol caseiro traziam um odor fétido à modalidade. Ainda a personagem que hoje, mais de vinte anos depois, continua a ser central para a polémica que vai arrefecendo, à espera que as suspeitas levantadas por escutas telefónicas sejam, afinal, produto de uma colectiva alucinação auditiva. Recuo no tempo. Por muitos campos de futebol, o erro dos árbitros não era mero erro: notava-se intencionalidade. Nos torneios juvenis em que entrei, sempre tive uma tremenda dificuldade para aturar o amadorismo dos castiços que se chegavam à frente para arbitrar jogos.
Lá saltavam das imediações, com o fato de treino colorido a amparar a pança avantajada. Assim que metiam o apito à boca, transfiguravam-se. É da essência humana: há quem não saiba deter o poder, nem exercê-lo, sem dele abusar. Há pessoas adoráveis que se perdem com o (mau) exercício do poder. Provam, dessa forma, que não estão fadadas para ter poder nas mãos, por pouco que seja. Aqueles sucedâneos de árbitros que se ofereciam para apitar jogos em torneios amadores eram acometidos pelo complexo da farda. O contágio era oferecido pelo apito e pelo jogo de cartões (amarelo e vermelho) que pouco tempo repousava na algibeira.
Nem era tanto a falta de conhecimento das leis do jogo que apoquentava. Era mais a arrogância com que passeavam os corpos gelatinosos, decidindo aleatoriamente, prejudicando uma equipa e depois compensando-a logo a seguir com outro erro, ainda maior, que penalizava o adversário. E a sanha persecutória contra alguns praticantes, que subitamente entravam no viveiro dos odiozinhos de estimação. A sinfonia de erros só terminava quando já não havia mais tempo para se jogar. Pelo caminho ficava uma série interminável de equívocos que ia esgotando a paciência dos jovens entretidos a tentar ganhar o pleito. Não fosse suficiente ter que derrotar a obstinada teimosia do adversário, que não deixava entrar a bola na baliza, ainda havia o homem do apito que ia estorvando o suor vertido.
Os amadores castiços que se prestavam a um inestimável favor de arbitrar a peleja eram o paradigma das decisões erradas: apitavam quando não deviam e ofuscava-se-lhes a vista perante infracções grosseiras. Assisti de tudo um pouco, fosse a favorecer ou a prejudicar a equipa em que participava. Os cartões que sancionavam faltas mais duras ou a impertinência verbal dos praticantes eram outra ilustração do incontido prazer com que estes amadores celebravam o fugaz poder. O complexo da farda em todo o seu esplendor. Era um desfile de cartões amarelos e vermelhos, que saíam da algibeira do ignorante com uma velocidade atroz.
Foi um episódio com cartões que me fez voltar as costas a este desporto. Tendo cometido uma falta banal no meio do campo, o esboço de árbitro apitou com estridência e acercou-se, autoritário, com o cartão amarelo agarrado pelos dedos sapudos, quase a entrar pelos meus olhos. Sem perceber porque estava a ser sancionado, disse-lhe que não via razão para o cartão amarelo. De forma educada, sem levantar a voz ou esbracejar voluptuosamente a indignação. Sem soltar uma palavra, a resposta veio da algibeira: o cartão vermelho empunhado na mão direita, enquanto a esquerda apontava na direcção da rua. Atónito, percebi que não valia a pena entrar em diálogo com a personagem. Só é possível dialogar com que tenha os neurónios no sítio. Foi a última vez que entrei numa partida arbitrada por um homem do apito.
Às vezes interrogo-me se não terá sido nesse momento que começou a geminar o anarquista que há em mim. Daí em diante, incomoda-me qualquer abuso de poder, seja onde for – no governo, onde são usuais, num salazarismo loquaz que não se desprende de quem ocupa o cadeirão do poder; na bazófia policial, quando os senhores agentes não hesitam em ostentar a farda como sinónimo de autoridade, sendo os súbditos educados para obedecerem caninamente à autoridade; até no trabalho, onde empertigados senhores e senhoras, embriagados com o poder, gostavam de o alardear.
(Adenda: talhado à medida deste texto, o seguinte episódio que acabo de testemunhar. Escondido na escuridão da madrugada, um carro da polícia estacionado em cima do passeio, mesmo ao lado de uma caixa Multibanco. Um senhor agente, preguiçoso, decidiu que essa era a melhor maneira de levantar dinheiro. De seguida arrancam, passando à minha frente – quando o semáforo havia passado para verde para quem vinha do lado em que eu estava. No semáforo à frente, viram à direita sem accionarem o pisca-pisca (quem vinha atrás que adivinhasse para onde eles queriam ir…). O que me acontecia se os questionasse pelas infracções que tinham cometido em tão curto espaço de tempo? Aposto que era detido por “desrespeito à autoridade”…)
1 comentário:
Bem, acho que neste último caso vias o vermelho directo. Compreendo perfeitamente esse sentimento de revolta perante o uso/abuso gratuito e arbitrário da autoridade. O homenzinho que te expulsou se calhar apanhava em casa ou era humilhado no trabalho... Foi pena ter-se perdido um jovem valor para o futebol português, mesmo sabendo que tendencialmente iria trilhar maus caminhos, perdão, clubes. :-)
Uma curiosidade: qual era a posição em que actuavas? Interiror? Extremo? Playmaker?
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