“Todos nós, sem excepção, participamos em maior ou menor grau em actos de pequena ou média corrupção. A coisa entranhou-se de tal forma na vida portuguesa, colou-se-nos de tal forma à pele que temos tendência a considerar que faz parte (da vida).” Rui Pego, Domingo, 15.10.06.
Sua excelência o inquilino de Belém pauta a agenda. Imagino o outro inquilino poderoso – o que decidiu não habitar o Palácio de S. Bento, a infalível e sebastiânica personagem que nos veio salvar do poço sem fundo – a destilar raiva e inveja. Vendem-nos a imagem de uma coabitação pacífica entre os dois esteios do regime dos dias que correm. Chamem-lhe “cooperação estratégica” ou qualquer outro eufemismo, suspeito que o primeiro-ministro deve andar nervoso com o protagonismo da figura presidencial.
Bastou o presidente ter feito um discurso sobre a corrupção e o tema passou a ser a prioridade das prioridades de toda a classe política. Que melhor beija-mão sua excelência podia desejar? De uma ponta à outra do espectro, é só consensualidade. Como se alguém tivesse descoberto a pólvora. Eis como, parafraseado o título deste texto, a corrupção passou a estar na moda. Entenda-se: não a corrupção, mas o combate a este fenómeno que nos mergulha num atraso terceiro-mundista.
O presidente da república deu o lamiré para profusas análises do fenómeno. Esta será mais uma. Entre os comentários publicados, destaco o que dá o mote ao texto de hoje. A ideia de que a corrupção, pequena ou grande, está entranhada. Como se fosse um diadema que nos enfeitiça, ou a varinha do prestidigitador que hipnotiza quem lhe aparece pela frente – e seremos todos, nesta versão apocalíptica –, sem que nada possamos fazer a não ser dar conta, quando acordamos, que estamos enleados na teia.
Discordo do diagnóstico. Não creio que haja lugar a tanto catastrofismo. No mesmo registo, Vicente Jorge Silva exemplificava há dias, no Diário de Notícias, que somos corruptos quando damos a “moedinha” ao arrumador. Se dou uma moeda ao arrumador no parque de estacionamento, estou a corromper alguém? Estarei a ser corrompido pelo arrumador? Posso-o fazer: a) por temer que, caso contrário, é maior a probabilidade do meu automóvel ser danificado (um simples cálculo económico: uma moeda de cinquenta cêntimos pode-me poupar centenas de euros); b) porque o arrumador não é andrajoso, é amigável, ou até é mal enjorcado, mas não me interessa saber se ele vai usar o pecúlio para droga, para ir ver um jogo de futebol, para se alimentar, ou para saciar outros vícios privados inconfessáveis. Não estou a comprar um favor que entre no domínio do ilícito ou do imoral. O que não empurra este acto para o terreno da corrupção.
Já a citação de Rui Pego faz mais sentido, se for descontado o exagero da generalização. Quem não conhece a famosa “cunha” que move montanhas e faz mãos hesitantes assinarem decisões que, de outro modo, ficavam adiadas para as calendas? Quem não foi testemunha, ou conhece histórias, de pequenos empurrões que desbloqueiam decisões? Quem nunca ouviu a expressão “tudo se arranja”? Quem nunca foi confrontado com listagens feitas à base dos favores pedidos pelos interessados, quantas vezes relegando para o fim da lista os que deveriam ser escolhidos caso o mérito fosse o critério de eleição? Sim, esta corrupção que não se paga em dinheiro. A pequena corrupção, sintoma do indisfarçável nivelamento pela mediocridade. O reino dos favores que se fazem hoje para serem compensados algures no futuro. O deplorável estado de coisas, que, concordando com Rui Pego, “colou-se-nos de tal forma à pele que temos tendência a considerar que faz parte (da vida).”
Como se tudo isto não bastasse, há ainda o efeito de contágio: os que teimam em ser ingénuos começam a perceber que os espertos passam à frente. Incomodam-se, sentem-se injustiçados. Aí é grande a pulsão para entrarem no mesmo jogo pérfido. É como um tenebroso vírus que não tem antídoto. Olhamos em volta e tudo nos cheira a este modo de actuar. Nos dias que correm, já nem sequer se consegue discernir com lucidez quando passamos a fronteira e entramos na câmara escura da corrupção. É mais isso que me inquieta: a incerteza do diagnóstico quando olhamos para o espelho em busca de borbulhas de corrupção que desfeiam a consciência. Às vezes, não temos a noção se aquela borbulha é sintoma de corrupção ou de qualquer outra disfunção.
Esta incerteza é mais doentia que a corrupção.
1 comentário:
Existe enraizado em praticamente todos os portugueses uma cultura, ou melhor um culto zeloso, da desonestidade. Da qual a corrupção e a cunha são somente simples resultados. Se a isto somarmos o culto pelo unanimismo (veja quantas vezes já ouviu a mediocre frase feita: "toda a gente acha") e temos a essência daquilo que é ser português. Quem exibir honestidade é considerado e tratado como irrelevante, senão mesmo parvo, por quem nos rodeia. Quem discorde da opinião geral, ou seja do que "toda a gente acha" é desde logo uma pessoa inconveniente e desagradável, a que compete a "toda a gente" ignorar e desprezar.
Quando eu era um adolescente estúpido e ignorante todos gostavam de estar comigo, e eu apesar de dialogar horas, dias ou noites a fio não dizia uma só coisa de jeito. Com a idade adulta tornei-me num leitor compulsivo e um devorador feroz de informação (em jornais, rádio, televisão, internet). Como resultado comecei a ter opiniões que na maioria das vezes não coincidem com aquilo que "toda a gente acha". Agora sinto-me um padre católico a viver em Teerão - não tenho nada em comum com aqueles que me rodeiam.
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