Na sala de espera, antes de entrar para a marquesa do dentista, espectador de um programa matinal de variedades. O desfile de bizarrias e coitadinhos, as desgraças espalhadas pelo território, no exercício da comiseração do público. Porque o público sente a consciência aliviada quando se apieda pelas desgraças alheias. Um golpe supremo de egoísmo, mascarado de generosidade que a gentinha julga aspergir.
O som estava emudecido. No ecrã, uma velha com óculos de fundo de garrafa falava, excitada. A entrevistada monopolizava as atenções, interrompia as perguntas dos entrevistadores. A mulher tresandava uma energia diabólica. No rodapé da imagem iam passando palavras que resumiam a entrevista. Foi então que se revelaram os predicados que a tinham levado ao estrelato momentâneo: “eu curo com as minhas mãos”, ia passando, uma e outra vez, no rodapé da televisão.
A velha com ar ensandecido era uma curandeira. Aposto que daquelas que vai religiosamente todos os anos ao congresso de medicina popular de Vilar de Perdizes, para mostrar as façanhas de que é capaz. A certa altura começaram a desfilar no informativo rodapé os atributos pessoais da curandeira. Curava de tudo um pouco, de achaques corriqueiros a doenças que nem os médicos conseguem curar. Até em doenças de pessoas já desenganadas ela operava milagres. E tudo só com as suas mãos, possuídas de um toque mágico que espanta as doenças que teimavam em cirandar as pessoas já cansadas da medicina tradicional. A ciência perante o impasse, porta aberta para as mãos milagreiras da velha curandeira.
A velha alucinada atirava perdigotos visíveis do outro lado da televisão, regurgitados pela boca desdentada, encimada por um lábio carnudo que alojava indisfarçável buço a caminho de bigodaço. Gesticulava uma energia imparável, tão imparável que os entrevistadores se impacientavam por a não conseguirem calar. Devia falar das mezinhas usadas para curar as maleitas do povo ignaro, do mesmo povo ignaro que vai ordeiramente à igreja e no dia seguinte bate à porta do consultório da curandeira. A fantástica capacidade do povo se entregar a paradoxos sem o perceber: hoje a crença religiosa tão arreigada, amanhã a crendice popular tão contestada pela hierarquia eclesiástica. E, no fundo, esta entrega do povo a curandeiros populares desmiolados não é a síntese da religiosidade do povo, uma religiosidade que prima pela superstição e não pela genuinidade dogmática?
Lembro-me de amigos contarem histórias passadas nas serranias perdidas do Gerês. Como um deles, destemido, se entretinha a apanhar pequenas cobras fugindo entre os arbustos ou nadando nos ribeiros. Quando desciam até à aldeia mais próxima, havia umas velhas vestidas de negro que trocavam os répteis por galinhas. Mais tarde souberam que as velhas usavam as cobras para bruxedos vários, na crendice popular de que os répteis eram portadores de mágicos poderes que curavam todo o género de maleitas.
A velha que não parava de espingardar o seu discurso na televisão curava com as mãos. Dir-se-ia que é sucessora dos poderes mágicos de Cristo, que também curava com as mãos. Daí a atracção do povo, porventura crente que estes curandeiros herdaram um quinhão dos poderes sobrenaturais do Cristo que veneram. Não sei se estes rivais da medicina tradicional incomodam os médicos. Porventura não é muita a clientela que os curandeiros desviam dos consultórios dos médicos. Talvez se contorçam de alergia ao verem as mezinhas propostas pelos curandeiros populares, ou apenas se riam pelo disparate que desafia a racionalidade da ciência que os treinou. O reino dos curandeiros transporta-nos para outra dimensão, bem longe da racionalidade e da ciência. É o aleatório que vinga, a inspiração sobrenatural que uns predestinados julgam ter. Com a ajuda de ervas seleccionadas e de magnetismos só ao alcance dos predestinados, vão granjeando uma corte de seguidores que a eles recorre sempre que a hipocondríaca veia sussurra a convicção de que estão doentes. Sim, a convicção da doença. Pergunto-me em quantos casos não é apenas a ilusão que fala mais alto, deixando que os curandeiros vençam na sua arte de prestidigitação.
Uma mistura de profunda ignorância popular com o poder da mente. A mesma mente que se convence que está doente entrega-se à persuasão das mezinhas dos bruxos. E tão depressa a mente se adoenta com mais uma maleita determinada pela tendência hipocondríaca, como depressa as prescrições dos curandeiros têm um efeito surpreendente no varrimento da enfermidade. A ignorância popular é o terreno de eleição para a indústria dos curandeiros alternativos. Enquanto a ignorância estiver profundamente arreigada no povo, havemos de ter muitos bruxos de norte a sul. Curandeiros que se banqueteiam à mesa da ignorância popular e, convenientemente, a perpetuam.
O som estava emudecido. No ecrã, uma velha com óculos de fundo de garrafa falava, excitada. A entrevistada monopolizava as atenções, interrompia as perguntas dos entrevistadores. A mulher tresandava uma energia diabólica. No rodapé da imagem iam passando palavras que resumiam a entrevista. Foi então que se revelaram os predicados que a tinham levado ao estrelato momentâneo: “eu curo com as minhas mãos”, ia passando, uma e outra vez, no rodapé da televisão.
A velha com ar ensandecido era uma curandeira. Aposto que daquelas que vai religiosamente todos os anos ao congresso de medicina popular de Vilar de Perdizes, para mostrar as façanhas de que é capaz. A certa altura começaram a desfilar no informativo rodapé os atributos pessoais da curandeira. Curava de tudo um pouco, de achaques corriqueiros a doenças que nem os médicos conseguem curar. Até em doenças de pessoas já desenganadas ela operava milagres. E tudo só com as suas mãos, possuídas de um toque mágico que espanta as doenças que teimavam em cirandar as pessoas já cansadas da medicina tradicional. A ciência perante o impasse, porta aberta para as mãos milagreiras da velha curandeira.
A velha alucinada atirava perdigotos visíveis do outro lado da televisão, regurgitados pela boca desdentada, encimada por um lábio carnudo que alojava indisfarçável buço a caminho de bigodaço. Gesticulava uma energia imparável, tão imparável que os entrevistadores se impacientavam por a não conseguirem calar. Devia falar das mezinhas usadas para curar as maleitas do povo ignaro, do mesmo povo ignaro que vai ordeiramente à igreja e no dia seguinte bate à porta do consultório da curandeira. A fantástica capacidade do povo se entregar a paradoxos sem o perceber: hoje a crença religiosa tão arreigada, amanhã a crendice popular tão contestada pela hierarquia eclesiástica. E, no fundo, esta entrega do povo a curandeiros populares desmiolados não é a síntese da religiosidade do povo, uma religiosidade que prima pela superstição e não pela genuinidade dogmática?
Lembro-me de amigos contarem histórias passadas nas serranias perdidas do Gerês. Como um deles, destemido, se entretinha a apanhar pequenas cobras fugindo entre os arbustos ou nadando nos ribeiros. Quando desciam até à aldeia mais próxima, havia umas velhas vestidas de negro que trocavam os répteis por galinhas. Mais tarde souberam que as velhas usavam as cobras para bruxedos vários, na crendice popular de que os répteis eram portadores de mágicos poderes que curavam todo o género de maleitas.
A velha que não parava de espingardar o seu discurso na televisão curava com as mãos. Dir-se-ia que é sucessora dos poderes mágicos de Cristo, que também curava com as mãos. Daí a atracção do povo, porventura crente que estes curandeiros herdaram um quinhão dos poderes sobrenaturais do Cristo que veneram. Não sei se estes rivais da medicina tradicional incomodam os médicos. Porventura não é muita a clientela que os curandeiros desviam dos consultórios dos médicos. Talvez se contorçam de alergia ao verem as mezinhas propostas pelos curandeiros populares, ou apenas se riam pelo disparate que desafia a racionalidade da ciência que os treinou. O reino dos curandeiros transporta-nos para outra dimensão, bem longe da racionalidade e da ciência. É o aleatório que vinga, a inspiração sobrenatural que uns predestinados julgam ter. Com a ajuda de ervas seleccionadas e de magnetismos só ao alcance dos predestinados, vão granjeando uma corte de seguidores que a eles recorre sempre que a hipocondríaca veia sussurra a convicção de que estão doentes. Sim, a convicção da doença. Pergunto-me em quantos casos não é apenas a ilusão que fala mais alto, deixando que os curandeiros vençam na sua arte de prestidigitação.
Uma mistura de profunda ignorância popular com o poder da mente. A mesma mente que se convence que está doente entrega-se à persuasão das mezinhas dos bruxos. E tão depressa a mente se adoenta com mais uma maleita determinada pela tendência hipocondríaca, como depressa as prescrições dos curandeiros têm um efeito surpreendente no varrimento da enfermidade. A ignorância popular é o terreno de eleição para a indústria dos curandeiros alternativos. Enquanto a ignorância estiver profundamente arreigada no povo, havemos de ter muitos bruxos de norte a sul. Curandeiros que se banqueteiam à mesa da ignorância popular e, convenientemente, a perpetuam.
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