29.12.06

A patrulha dos bons costumes e a denúncia do consumismo natalício: ou, visão alternativa, os portugueses são um povo generoso


Fomos bombardeados por números assustadores que ilustram o natal deste ano: 450 milhões de mensagens de telemóvel, uma pipa de massa gasta em prendas. Os números jorravam sem cessar, pintando de negro o quadro dantesco que denuncia, pela enésima vez, como estamos viciados no insidioso consumismo.

Momento certo para dar voz às patrulhas da nossa consciência: quem mais haveria de ser, a DECO exprimiu a sua “profunda preocupação” com os sinais de um povo que ostenta consumo acima das suas possibilidades. De braço dado como uma qualquer agência de comunicação emparelhada com o governo, que fabricou uma das notícias do excesso de dinheiro gasto, mostrando aos incautos cidadãos que se eles prescindissem dos presentes e ofertassem esse dinheiro ao magnânimo Estado a colecta chegava para construir o aeroporto da Ota. Está-se mesmo a perceber onde querem chegar: o tocar a rebate das consciências, convidadas a bater no peito em jeito de expiação de culpa, para que cada um se mentalize do desígnio nacional que é a construção de mais um elefante branco, Ota de seu nome. Pela parte que me toca, a estes apelos sentidos respondo com mais consumo, se os rendimentos mo permitirem.

As notícias misturadas com estatísticas podem ser vistas por um prisma oposto. Em vez do catastrofismo dos que habitualmente defenestram o capitalismo (e o consumismo é uma das piores excrescências do capitalismo, assim somos meticulosamente instruídos), descobrir os aspectos maravilhosos nas notícias difundidas. Por uma questão de método, convinha colocar duas interrogações prévias aos fautores do panorama catastrófico. Primeira, a comparação temporal destes números: há dados que permitam comparar o dinheiro gasto no natal com anos anteriores? Verificou-se um aumento ou uma diminuição, e em quantos pontos percentuais? Só para confirmar se estamos em crise, como é propalado aos quatro ventos; e se estamos em crise e continuamos presos à voragem do consumo, num salto no abismo do endividamento que parece pouco responsável. Segunda pergunta: a comparação espacial, indagar se as verbas para prendas de natal são superiores (em valores relativos) a outros países europeus. Só para perceber se este é um fenómeno isolado ou, antes, uma tendência em toda a Europa. À falta destes dados, a difusão da notícia com o tom dantesco não revela nada.

E mesmo que se viesse a confirmar que somos uma ilha de consumismo, há o lado bom que se solta das amarras dos moralistas que exorcizam o consumo. Vamos supor que nunca como dantes os portugueses abriram os cordões à bolsa, nunca se endividaram tanto para as prendas de natal. Qual é o mal, se nisso podemos ver uma manifestação de generosidade? (Ainda que os anacrónicos representantes eclesiásticos o denunciem, apontando o dedo à materialização do espírito natalício.) Não estou a sugerir que os afectos sejam mensurados pelo valor do que oferecemos. Contudo, se num arroubo momentâneo alguém perde o juízo e oferece uma prenda surpreendente à pessoa amada ou aos filhos, ainda que venha a diferir o pagamento em vários meses, como podem os trituradores da consciência alheia censurar este acto enternecedor de generosidade?

É de aplaudir que DECO exiba a sua enorme preocupação pela nossa situação financeira. Sabemos que as famílias estão endividadas até ao pescoço (em rigor, os dados dizem que estão submersas em dívidas). Mas alguém passou procuração à DECO para vir para o espaço público como zeladora da situação financeira das famílias e de cada indivíduo? Haverá, para além deste pretenso altruísmo, o verdadeiro fito: a sanha persecutória aos bancos, que arrostam a culpa da deriva consumista das pessoas, incapazes de resistirem aos créditos falsamente fáceis que os bancos “oferecem”. Estas guerras deviam evitar o envolvimento das pessoas que decidiram gastar mais dinheiro com prendas de natal, agora convocadas para a posição de aliados dos inimigos da banca. No mínimo, é indigno: sem os bancos e os créditos de várias modalidades não teria sido possível satisfazer os desejos natalícios (caprichosos ou não, não interessa).

As notícias e a enxurrada de dados estatísticos do dinheiro gasto no natal não me assustaram. Nem me puseram a acenar com a cabeça, em tom de reprovação, na denúncia do imódico consumismo. Enchi-me de contentamento: por sermos tão generosos, por estes dias de natal. Quando alguém gasta o que tem e o que não tem está a empenhar o suor do seu trabalho – do que já trabalhou e do que vai trabalhar no futuro. Há acto maior de generosidade?

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