18.12.06

O circo do natal, os animaizinhos amestrados e o contentamento das criancinhas


Talvez o espírito natalício quebrasse o gelo que assimila a insensibilidade perante a quadra. Talvez cantasse em dó maior as melodias que povoam a época natalícia. Porventura enlevar-me pela doce maré, com a obrigatória visita ao circo. E utilizar muitas vezes palavras em diminutivo, que por uns dias somos um simulacro da concórdia e o coração amanteigado faz as vezes de mordomo dos dias de natal. E o circo: uma procissão necessária, sem a qual o natal não sabe a natal.

Nem sempre cumprimos o mister mais fácil. Nem sempre conforta fazer de conta que a realidade foi varrida para debaixo do tapete, por uns dias que seja. Não vou mergulhar nas injustiças, ou na pobreza, na fome, nas doenças que levam a vida de infantes quando tanta vida prometida restava por diante. Sei que estes estão entre os problemas maiores da humanidade. Como sei que sozinho sou incapaz de dobrar o cabo e sacudir estas vergonhas para o canto do passado. Serei leviano, mas as palavras que hoje escrevo vêm influenciadas por uma minudência (quem sabe?): os circos, um código de sinais para entretenimento das crianças, chegado o tempo natalício.

Porém o circo choca-me. Nada contra palhaços e trapezistas. Choca-me pelo tratamento indigno dado a animais ferozes que ali aparecem, perante a audiência boquiaberta, como feras amestradas. Um atentado contra a natureza selvagem destes animais. Um tigre majestoso salta para cima do banquinho e obedece cegamente aos urros e gestos do tratador. Que sacrifícios terá o animal suportado até aparecer em público como um inofensivo gatinho com um tamanho gigantesco? E, insisto, um tigre ou um leão de farta juba a reagirem de forma pavloviana às ordens de uma tratador, é a negação do que estes animais são, reis da selva, predadores orgulhosos. Pode ser impressão minha, mas percebo a tristeza no olhar destes animais de cada vez que entram em cena para mais uma performance abrilhantada pelos aplausos dos espectadores e um naco de carne de sobremesa.

Dirão: o circo existe porque as crianças gostam de circo. O circo anda de braço dado com o natal. E o natal é, sobretudo, crianças. Deixemos o circo existir como sempre existiu, com as feras amansadas a fazerem números circenses para os petizes encantados. É para isso que os animais irracionais servem: caucionam a superioridade da espécie humana. E quando toca a agradar às criancinhas, nada pode obstar à alegria que as faça esboçar um largo e prolongado sorriso, nada compensa o brilho dos olhos ao contemplarem o néon mágico do circo.

Então que não se fale de uma educação responsável nos valores que reclamam um qualquer sagrado altar. Esqueçamos a educação ambiental, pelo menos enquanto deixarmos que os circos sejam o que são. Não preconizo proibições. Aposto numa educação responsável que ensine às crianças que os animais não são coisas nem escravos para absoluto deleite da estupidificada espécie humana. Não me admiraria se um enérgico militante da causa ambiental levasse a prole ao circo e, ele também, se deslumbrasse com o domínio que o Homem exerce sobre as bestas mais poderosas à face do planeta. Tão habituado às incongruências destes verdes que o são apenas na casca, não ficaria surpreendido.

Estes animais pertencem aos seus habitats naturais. Aprisioná-los em jaulas exíguas, fazê-los viajar de cidade em cidade na itinerância rotineira do circo, é uma violência que explica muita da ignorância humana. Nem quero imaginar as malícias por que passam enquanto são treinados. Dói-me vê-los a passear na arena, saltando ordeiramente de banquinho em banquinho, elevando as mãos ao sinal do tratador, fazendo piruetas entre aros ardentes. Já os vi enjaulados no exterior da caravana circense, para atrair as atenções do povaréu. Expostos à curiosidade humana, não têm direito ao sossego que o infortúnio da sua captura lhes retirou. São apenas aberrações que o povo olha, sem comiseração nem sensibilidade, porque os animais são de segunda ordem de grandeza. Deus fê-los assim, para serem submetidos à vontade do Homem. Os dogmas não se questionam.

É perante episódios destes que me apetece fazer coro com Victor Hugo: “quanto mais conheço os Homens, mais gosto de animais”.

Sem comentários: