O relógio avança, impiedoso. Encurta o tempo útil que a vida conhece. Cada segundo que passa, mesmo os muitos segundos que nem sequer se dá conta que foram esvaídos, é matéria inerte emoldurada num retrato dos tempos idos. Apenas nostalgia, naqueles dias em que a revisitação do passado entrega o presente nos braços da letargia. A consciência de que o tempo definha, inexorável.
Ao mesmo tempo, a urgência em chegar mais cedo às rotinas. Uns minutos mais cedo, fosse a poupança de tempo legar um balão de oxigénio que prolonga o tempo útil da existência. E, contudo, a perplexidade vagueia com uma interrogação lancinante: apressar os ritmos será chegar mais cedo também ao destino final, num encadeamento acelerado que traz o desfecho extemporâneo? Os olhos são a imagem da voragem dos sentidos, devoram a informação que plana em cima da cabeça, as artes que se entregam no regaço, as sensações inexprimíveis que os sentimentos nutridos por outros acalentam. Há, na pressa de viver, a urgência em morrer?
Por vezes, a inquietação de sentir que a urgência do modo não é elixir. Os passos apressados, o encurtamento dos minutos, a catadupa de coisas agendadas – tudo arroteia o agreste terreno para depois perceber que muito mais há-de ficar por ver, por fazer, por dizer. Então a angústia nomeia uma larga avenida no labirinto das emoções. Uma confluência de sentimentos ambíguos – doce e amargo, a cor e o negro embaciado que tolda a imagem, tudo o mais no seu profundo contraste. Sucessão de passos acelerados e de quedas em profundos precipícios, tão profundos que o corpo parece planar na imensidão do vazio, sem lugar para a queda amortecer.
Tudo se passa no interior de um pesadelo. Enquanto o corpo se debate na vertiginosa queda, o tempo parece ter parado. Desfilam as imagens nevrálgicas do passado, os momentos que compensa relembrar e aqueles que a memória quer cegar. Toda uma experiência de vida compulsada nos escassos momentos do mergulho no precipício. O corpo nunca chega a estatelar-se. O sonho termina antes, mesmo antes do chão ameaçador se fazer campa voraz.
Ao despertar, o sabor ácido do arrependimento. Do muito que não foi feito e de como o tempo já não regressa para resgatar. Do que ficou imortalizado no lugar das memórias não pode haver lugar ao arrependimento. Mesmo que, num esforço maior, recuse olhar para trás do ombro, destapando os fartos cobertores que sedimentam tempos idos, o desconforto ao saber que os ponteiros do relógio anunciam a contagem decrescente. Em vez da tranquila contagem do tempo, sem pressa para degustar a vida como ela é, a urgência do modo. A pressa de viver com receio que ao chegar ao terminal tanto tenha ficado por conhecer. Lá, onde o tempo se compacta para extrair toda a sumarenta existência, sobra a angústia do que parece cedo traga o entardecer das coisas.
O grande paradoxo. Desorientado na encruzilhada fatal. Ora cedo, ora com a perturbante sensação de que já é tarde, ou que a chegada se fez fora do tempo. Os lamentos são apenas choros inconsequentes pelo tempo que não volta a acontecer. Módicos fragmentos dos episódios esparsos, um atrás de outro ceifando os arbustos desalinhados que estorvam a passagem. No calor tórrido do sol no pino do Verão, faúlhas de incêndios que consomem o arvoredo vomitadas das distantes labaredas, poisando no cabelo, cortando a respiração. E o calor abrasador que destila o suor – o suor de quem vive em correria, querendo chegar cedo aos lugares onde só tarde se arriba.
Esse calor dos sentidos tolda o discernimento. É a febre de viver apressadamente que desfaz a tranquilidade, como navio à deriva levado pelo mar tempestuoso contra as rochas que escondem a praia. Fica a dor do embate nas rochas, o rescaldo da urgência do tempo que esquece que só os ponteiros do relógio ditam a sua marcha, não os simulacros que intuem a aceleração do tempo sem perceber que o pavio assim se encurta. Fica uma intensa dor, como se na boca eclodisse uma pedra incandescente: a urgência de cedo chegar imprime a antecipação do final que se anseia sempre adiado. Cedo, ou a sombra do tardio ocaso.
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