Excelentíssimo senhor juiz: tomei conhecimento, pela imprensa, que V. Exa. não aceitou os argumentos de um homossexual agredido pelo seu parceiro, recusando punir a agressão pelo crime de violência familiar. Argumentou que a lei não reconhece casamentos entre pessoas do mesmo sexo e que só faz sentido falar de violência familiar no seio de um matrimónio. É nestas alturas que me envergonho de ter a mesma licenciatura que V. Exa.
Desafio-o, venerável magistrado, a seguir o meu raciocínio. Pode ser que se faça luz e os seus quadros mentais retrógrados sejam remetidos para a prateleira onde jazem os anacronismos desta vida. Como prolegómeno, queria esclarecê-lo que sou heterossexual convicto. Não sou activista dos direitos dos homossexuais, nem afino pelo diapasão de certas correntes políticas que encaram a defesa de causas fracturantes como uma estratégia oportunista para crescer no panorama eleitoral. Só para perceber que a minha inquietação com a sua sentença é descomprometida de causas. Creio que esse distanciamento me confere mais imparcialidade para ajuizar V. Exa., caso não considere do seu altar que o afronto.
Digníssimo magistrado: o senhor e eu sabemos que se algo caracteriza um jurista é a capacidade para descobrir interpretações sinuosas das leis. Decerto saberá melhor que eu – até pelos pareceres de ilustres catedráticos que lhe passam pela secretária, com as inevitáveis cambalhotas argumentativas consoante os interesses de quem lhes paga – que um jurista é capaz de puxar a brasa à sua sardinha vendo nas palavras um sentido que mais ninguém consegue discernir. E que o fazem com o maior dos despudores, como se as pessoas que se intrigam com o iluminado exercício hermenêutico exibissem a sua ignorância atroz.
Poderá V. Exa. esforçar-se por se agarrar à lei na recusa de qualificar como violência familiar uma agressão entre duas pessoas que partilham a vida familiar, alegando que só pode haver violência familiar se estiver legalmente constituído o matrimónio. Saiba que é V. Exa. que professa a maior das ignorâncias. Porventura vive enclausurado numa torre de marfim, isolado da vida real. Contudo, lá fora a vida decorre de forma diferente, desfasada das suas preferências. Há pessoas do mesmo sexo que decidem viver em conjunto. Que a lei deste país ainda não reconheça o direito de serem cônjuges, creio que é uma questão de tempo. Mesmo que isso venha ao arrepio da sua sensibilidade. Caso não saiba, há pessoas de sexo diferente que vivem debaixo do mesmo tecto, com património comum, sem estarem casadas. Pergunto-lhe: nesse caso, se o homem agride a mulher (ou vice-versa), também não se trata de violência familiar?
Saber de leis não é apenas uma questão de semântica. Se o fosse, os linguistas seriam os melhores juristas. Ao contrário de V. Exa., estou afastado do direito há muito tempo (mais de quinze anos). Contudo não esqueço os alicerces ensinados nos bancos da universidade. Não esqueço que o direito é uma realidade social, adaptável ao que se passa na sociedade. E, senhor juiz, por mais que lhe custe há homens que preferem homens a mulheres. Não serão como o senhor e eu, que gostamos mais de mulheres. Ora como não há lei que proíba os homossexuais de o serem, não faz sentido adaptar as leis que se aplicam à vida matrimonial aos casais homossexuais? Mais outra interrogação: por mais que lhe cause estranheza, se há uma agressão entre duas pessoas do mesmo sexo que vivem debaixo do mesmo tecto (e se o fizeram, não terá sido por amor?), essa agressão não corresponde a todas as características da violência familiar?
Para rematar esta carta aberta, regresso aos tempos de estudante de direito. Resgato outro ensinamento fundamental: os juízes devem aplicar a lei sem a contagiar com as suas preferências pessoais. Ou a lei passa a estar exposta às arbitrariedades dos juízes. Imagino que lhe repugne a ideia de dois homens a viverem juntos. Isso existe, senhor juiz. E se dois homens decidem andar atrelados, quando se esbofeteiam entramos no domínio da violência familiar. Rejeitá-lo fica-lhe mal. Perpassa a ideia de miopia intelectual de V. Exa. Ou isso, ou ignorância em estado bruto. V. Exa. terá a liberdade de escolher uma das hipóteses. Ou de se libertar delas quando perceber que deve respeitar as opções individuais, ainda que sejam uma contrariedade pessoal.
O mundo não é o que idealizamos, senhor juiz. É apenas o filme que passa diante dos nossos olhos, gostemos ou não. Como aplicador da lei, é indigno do seu estatuto pervertê-la de harmonia com a imagem do mundo que gravou nos seus quadros mentais. Mas, no fundo, é bom que o direito continue a destilar abjecções como V. Exa. Quanto mais não seja, para reforçar a opção de me ter afastado para os antípodas do direito.
Desafio-o, venerável magistrado, a seguir o meu raciocínio. Pode ser que se faça luz e os seus quadros mentais retrógrados sejam remetidos para a prateleira onde jazem os anacronismos desta vida. Como prolegómeno, queria esclarecê-lo que sou heterossexual convicto. Não sou activista dos direitos dos homossexuais, nem afino pelo diapasão de certas correntes políticas que encaram a defesa de causas fracturantes como uma estratégia oportunista para crescer no panorama eleitoral. Só para perceber que a minha inquietação com a sua sentença é descomprometida de causas. Creio que esse distanciamento me confere mais imparcialidade para ajuizar V. Exa., caso não considere do seu altar que o afronto.
Digníssimo magistrado: o senhor e eu sabemos que se algo caracteriza um jurista é a capacidade para descobrir interpretações sinuosas das leis. Decerto saberá melhor que eu – até pelos pareceres de ilustres catedráticos que lhe passam pela secretária, com as inevitáveis cambalhotas argumentativas consoante os interesses de quem lhes paga – que um jurista é capaz de puxar a brasa à sua sardinha vendo nas palavras um sentido que mais ninguém consegue discernir. E que o fazem com o maior dos despudores, como se as pessoas que se intrigam com o iluminado exercício hermenêutico exibissem a sua ignorância atroz.
Poderá V. Exa. esforçar-se por se agarrar à lei na recusa de qualificar como violência familiar uma agressão entre duas pessoas que partilham a vida familiar, alegando que só pode haver violência familiar se estiver legalmente constituído o matrimónio. Saiba que é V. Exa. que professa a maior das ignorâncias. Porventura vive enclausurado numa torre de marfim, isolado da vida real. Contudo, lá fora a vida decorre de forma diferente, desfasada das suas preferências. Há pessoas do mesmo sexo que decidem viver em conjunto. Que a lei deste país ainda não reconheça o direito de serem cônjuges, creio que é uma questão de tempo. Mesmo que isso venha ao arrepio da sua sensibilidade. Caso não saiba, há pessoas de sexo diferente que vivem debaixo do mesmo tecto, com património comum, sem estarem casadas. Pergunto-lhe: nesse caso, se o homem agride a mulher (ou vice-versa), também não se trata de violência familiar?
Saber de leis não é apenas uma questão de semântica. Se o fosse, os linguistas seriam os melhores juristas. Ao contrário de V. Exa., estou afastado do direito há muito tempo (mais de quinze anos). Contudo não esqueço os alicerces ensinados nos bancos da universidade. Não esqueço que o direito é uma realidade social, adaptável ao que se passa na sociedade. E, senhor juiz, por mais que lhe custe há homens que preferem homens a mulheres. Não serão como o senhor e eu, que gostamos mais de mulheres. Ora como não há lei que proíba os homossexuais de o serem, não faz sentido adaptar as leis que se aplicam à vida matrimonial aos casais homossexuais? Mais outra interrogação: por mais que lhe cause estranheza, se há uma agressão entre duas pessoas do mesmo sexo que vivem debaixo do mesmo tecto (e se o fizeram, não terá sido por amor?), essa agressão não corresponde a todas as características da violência familiar?
Para rematar esta carta aberta, regresso aos tempos de estudante de direito. Resgato outro ensinamento fundamental: os juízes devem aplicar a lei sem a contagiar com as suas preferências pessoais. Ou a lei passa a estar exposta às arbitrariedades dos juízes. Imagino que lhe repugne a ideia de dois homens a viverem juntos. Isso existe, senhor juiz. E se dois homens decidem andar atrelados, quando se esbofeteiam entramos no domínio da violência familiar. Rejeitá-lo fica-lhe mal. Perpassa a ideia de miopia intelectual de V. Exa. Ou isso, ou ignorância em estado bruto. V. Exa. terá a liberdade de escolher uma das hipóteses. Ou de se libertar delas quando perceber que deve respeitar as opções individuais, ainda que sejam uma contrariedade pessoal.
O mundo não é o que idealizamos, senhor juiz. É apenas o filme que passa diante dos nossos olhos, gostemos ou não. Como aplicador da lei, é indigno do seu estatuto pervertê-la de harmonia com a imagem do mundo que gravou nos seus quadros mentais. Mas, no fundo, é bom que o direito continue a destilar abjecções como V. Exa. Quanto mais não seja, para reforçar a opção de me ter afastado para os antípodas do direito.
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