19.12.06

Os “boys”: esses injustiçados, esses incompreendidos

Se há coisa que me inquieta são as apreciações eivadas de injustiça. Pode ser por distorção na análise, o que torna a injustiça desculpável (a lente está desfocada). De outras vezes, apenas intencionalidade e aleivosia: os outros são ajuizados com o estigma de quadros mentais predefinidos, o que prejudica a objectividade e cerceia a razão.

Eis a pergunta do momento: crucificar os carreiristas que se empoleiram para abraçarem uma migalha nas sinecuras do Estado generoso e gigantesco? Colocado de forma mais prosaica: censurar os “boys” que se banqueteiam no lauto manjar do orçamento de Estado? Vem isto a propósito do esforço de um dos líderes da oposição para vergastar o intocável governo em funções. A notícia fala por si: “o líder do PSD, Marques Mendes, diz-se “revoltado” com a anunciada criação de uma empresa para gerir a reforma da Administração Pública que, acusa, vai “aumentar o número de administradores e estruturas”, colocando “mais boys a comer à mesa do Orçamento””.

(Não, não interessa a incoerência que se solta com a verve do líder transitório do PSD. Nem tão pouco resgatar da memória testemunhos credíveis que atribuem ao actual inquilino do Palácio de Belém, ainda enquanto primeiro-ministro, a engorda do monstro que hoje é o Estado que nos sufoca e cerca. Vou descontar estes aspectos, para não achar risível o histerismo do líder do PSD perante uma (mais uma) largueza despesista da providencial “esquerda moderna”.)

E que tal defender as regalias que vão parar ao prato dos “boys” que ostentam cartão de sócio? Os que se indignam são invejosos que gostariam de estar na privilegiada posição dos “boys”. De uma maneira ou de outra, o orçamento de Estado alimenta muitos “boys” e “girls” que fazem da política tirocínio e nela se reformam, sem mais nada saberem fazer. Quando o protesto ecoa na boca do líder do maior partido da oposição, daquele partido que tantos anos deteve o poder e que aspira a derrubar os actuais donos do poder, só uma sonora gargalhada.

Coitados dos “boys”. Empenham a vida na dedicada militância partidária; não o fazem sem interesse futuro. A vida nos partidos não é um sacerdócio. Os militantes não são almas caridosas, dando o seu melhor apenas para que os da sua cor possam encher o bandulho das sinecuras que o poder oferta. Desenganem-se os líricos que acreditam numa política de causas, ou numa política porque é a melhor para o país. Os políticos e os militantes dos partidos não são escuteiros. Sabem, decerto melhor que os ingénuos que continuam fora do circuito partidário, como se distribuem as benesses quando o poder toca aos “nossos” (deles). Muita serventia, muita genuflexão, muitos contactos privilegiados, muitos pedidos especiais – e, em contrapartida, exibem a folha de serviço(s) em prol do partido. É então chegado o momento de esfregar as mãos com a recompensa pela dedicada militância. É só destapar o tacho.

Além do mais, os “boys” são uma casta de iluminados. Pessoas muito competentes, que sempre se distinguiram pelo brilho intelectual, intensidade do discurso, qualidade literária. Merecem uma compensação à altura das excelsas qualidades que exibem, que os diferenciam dos comuns mortais. Estes, ou não passam da cepa torta da militância partidária, ou são asnos que teimam em ficar à margem da vida dos partidos. Pior para eles.

Os “boys” estimulam a economia nacional. Basta ver o exemplo denunciado pela língua viperina do líder do PSD: vão ser criadas duas novas empresas para gerir a administração pública. Para Marques Mendes, é o pretexto para mais uma coutada a “boys” e “girls” empunhando o cartão de sócio do PS. Decerto gente que está desempregada, ou a ser utilizada em tarefas que são um subaproveitamento das suas incontestáveis aptidões. Há gente que vai ser retirada das estatísticas do desemprego. Já se percebe, só por aqui, quão virtuosa é a ideia do governo. Se adicionarmos o muito que vão consumir com os seus principescos salários e o bem-estar que vão distribuir pelos entes queridos, estamos no caminho para perceber como um tacho para um “boy” multiplica a felicidade por três, quatro, cinco – tantos os membros do agregado familiar. Sem contar com os efeitos multiplicadores (que o economista Keynes, herói nunca esquecido da “nova esquerda”, tão bem ensinou): mais consumo significa mais lucros para as empresas; implica ainda mais emprego, pois as empresas vão ter que contratar mais trabalhadores para poderem aumentar a produção; e estes trabalhadores, por sua vez, vão aumentar o consumo – e assim sucessivamente, até ao infinito (como se a nau pudesse navegar até ao infinito…).

Não esqueçamos o serviço inestimável que estes “boys” prestam à comunidade. Decidem, ou aconselham decisões, com a refulgência das suas inatas qualidades intelectuais e o padrão de competência inatingível pelo comum dos mortais. Até acho que eles estão mal pagos. Pelo bem que proporcionam, deviam ter remunerações bem superiores. Há que o não esquecer: quem deles mal disser está na posição de desdenhar o alheio. E já sabemos o que se diz de quem desdenha. Hossanas, pois, aos “boys” e “girls” socialistas. Um grande bem-haja a todos eles, mais a quem tem a febril imaginação para inventar mordomias que os mantêm ocupados e lautamente remunerados. Que seríamos de nós sem eles? Uma árida terra, aposto.

1 comentário:

Rui Miguel Ribeiro disse...

Gostei de ler. Na mouche, com cinismo e sarcasmo q.b.