5.1.07

A “esquerdização” da direita francesa


Entre os estudiosos da política, uma dos temas que mais aquece o debate é a distinção esquerda/direita. Para alguns deixou de fazer sentido olhar para a política dentro do tradicional hermetismo entre direita e esquerda: ambos os lados incorporaram ideias e práticas que eram apanágio do outro lado da barricada. Assim como a direita passou a contemplar algumas causas sociais, também a esquerda (mais moderada) tomou-se de amores pelo pragmatismo e moldou as políticas ao império da globalização e do capitalismo. Para outros, apesar de tudo ainda faz sentido a divisão entre direita e esquerda. Nem que seja pelo conforto das convenções sedimentadas com o tempo.

De ontem vem uma notícia que parece dar razão a quem aponta para a osmose entre direita e esquerda. O primeiro-ministro francês anunciou que todos os residentes poderão reclamar o direito a habitação condigna perante os tribunais, que doravante irão forçar o Estado a cumprir com as obrigações previstas na Constituição. De acordo com a notícia, o plano envolve duas fases: “a primeira começará no final de 2008, e beneficiará os sem-abrigo, trabalhadores mais pobres e mães solteiras. A segunda, que poderá terminar em Janeiro de 2012, permitirá que todas as famílias ou pessoas a residir em espaços exíguos ou insalubres possam exigir uma casa digna”.

Anoto que isto está em fase embrionária. O primeiro-ministro francês apenas prometeu a apresentação de um projecto de lei para discussão no parlamento. As eleições presidenciais estão num horizonte de quatro meses. A direita francesa sente que a candidata socialista beneficia de uma ampla vaga de fundo, atrelada ao populismo do seu pacote eleitoral. Porventura a medida anunciada faz parte da batalha eleitoral, com os rivais a puxarem da imaginação que permita um sedutor pacote de promessas para atrair a maior fatia do eleitorado. No rescaldo do eleitoralismo, já se sabe, sobra pouco. É um vício da democracia: o largo hiato entre promessas e concretizações. Os políticos servem-se da memória curta do eleitorado para passarem uma esponja nas promessas miríficas. Quando assentam os pés no chão, fica a política do possível, bem longe das promessas esplendorosas que ficaram registadas durante a campanha. Os votantes, engodo fácil, farão as vezes de vítima de adultério. Um logro.

Duvido que seja possível concretizar a medida. Primeiro, ela não passa de um anúncio que embeleza a campanha eleitoral. O mais certo é cair em saco roto. Segundo, ainda que promessa se solte das amarras das belas intenções, duvido que haja condições para o Estado francês garantir a todos os necessitados uma habitação condigna. O erário público não estica. Logo agora que a França – e todos os países que estão na zona euro – tem que se orientar por uma judiciosa disciplina orçamental, fico sem perceber onde vão descobrir os recursos para financiar esta medida. (A menos que a França fique sem vergonha de lamber as feridas da potência mundial que deixou de ser, desafectando recursos da defesa para a habitação social). A intenção é bela; o tempo sublinha a ausência de condições para a tornar viável.

Para além destas dúvidas, o que fica do anúncio do governo francês é o simbolismo da promessa. A garantia de habitação condigna a todos os carenciados inscreve-se nas preocupações sociais que são terreno pisado pelas esquerdas. Nem que seja pelo atractivo da captação do voto fácil, embrulhadas num vistoso papel de celofane da demagogia e do populismo. Entretenho-me, pelo caminho, a imaginar a atrapalhação e o alvoroço dos apoiantes da candidata socialista. Adivinho-os, desorientados, como quem sente que o chão desapareceu debaixo dos pés. A promessa tem o timbre tão próprio da esquerda, desfraldando a bandeira da sensibilidade social que a esquerda convoca para si com exclusividade. Existe o risco de parte do eleitorado de esquerda se deixar seduzir pela promessa do governo francês e votar no candidato presidencial da direita. Um curioso cenário que se perfila: a candidata da esquerda derrotada por causa de uma promessa da direita com o cunho esquerdista.

Também me entretenho a adivinhar a irritação dos esquerdistas empedernidos, mais as cambalhotas mentais dadas para combater a promessa da direita francesa. Se forem fiéis aos seus princípios, terão que aplaudir a promessa. Ela encerra tudo aquilo que as esquerdas defendem: os interesses dos mais desfavorecidos. Há sempre espaço para a contestação da promessa, denunciando-a como tal, um simples artefacto do jogo eleitoral. É uma armadilha pisada por quem usar esse argumento: todas as promessas eleitorais que eles fizerem vêm manchadas com a mesma mácula.

Não fiquei surpreendido com a promessa da direita francesa, apesar de ressoar a algo que vem contra a maré. Esta é uma direita que sempre viveu dependente do intervencionismo do Estado, uma direita que está nos antípodas do liberalismo. Caduca como a França. Em 2012 cá estaremos para julgar as intenções da direita francesa.

1 comentário:

Rui Miguel Ribeiro disse...

Acho que não será preciso esperar por 2012. Isto deve ser o último cartucho de Villepin para ser o candidato da Direita ao Elysée. Para azar dele, nem que distribuisse foie-gras, fromage e champagne a rodos, não acredito que ganhe as primárias.
A promessa, essa é tão utópica que chega a ser cómica. Quanto aos fundos, se lá se chegasse, mais depressa viriam de um aumento de impostos ou à custa de mais uma machadada (ou deverei dizer guilhotinada) no Pacto de Estabilidade, do que do orçamento da Defesa ou da Agricultura.

P.S. Se a coisa chega cá, pode ser que me atribuam uma vivenda na Foz ou no Restelo!!!