Hoje escrevo como licenciado em direito. Acima de tudo, como cidadão, com o natural direito à indignação quando um tribunal escorrega para o dislate. Como um novelo que se entretece em si mesmo, é nestas alturas que regresso às catacumbas para onde foi atirada a inútil licenciatura em direito. Certifico-me que não há o menor arrependimento de andar tão longe dos corredores da justiça, onde o odor bafiento teima em gritar de pulmões bem cheios.
Há alturas em que somos surpreendidos por sentenças mirabolantes. Os magistrados fazem gala em mostrar a sua particular concepção de justiça. Algumas vezes, a opinião pública fica com o travo amargo da injustiça desta justiça. Lá dirão os especialistas que o povo não percebe nada de direito. Os mesmos especialistas que comunicam no típico linguajar hermético dos juristas, idioma que só eles percebem mais o seu raciocínio labiríntico. Esses especialistas vêm lembrar que nem o povo nem a comunicação social podem ajuizar os juízes que proferem sentenças, pelo desconhecimento do “caso concreto”. Na linguagem dos mortais, isto traduz-se numa ideia: a magistratura plana acima dos mortais, intocável do alto da sua sapiência que rivaliza com as divindades. Em alguns juízes haverá o íntimo desejo de censura prévia, para impedir que a justiça venha parar à comunicação social.
O último despautério partiu do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), o tribunal que está no topo da hierarquia dos tribunais (descontado o politizado Tribunal Constitucional). Decidiu reduzir a pena de um indivíduo condenado por violação reiterada de uma criança de treze anos. A imprensa deu a conhecer excertos do acórdão do STJ. A composição tresanda a ditirambo, pela soez argumentação congeminada pelo juiz-conselheiro que redigiu o acórdão. Retive duas justificações. Primeiro, não é a mesma coisa violar uma criança de treze anos e uma criança de seis anos. A última hipótese seria muito mais grave. Segundo, parece que ficou provado que a vítima tinha erecções, o que prova consentimento.
Eu acho que os juízes deviam passar pelo crivo de um aturado exame psicológico. Com alguma periodicidade, não apenas quando estivessem a fazer o tirocínio para chegarem a juízes. A avaliação psicológica servia para despistar comportamentos desviantes entre a magistratura. Com o propósito de impedir que a justiça seja inquinada por personalidades doentias que tropeçam no absurdo da argumentação como a que foi dada a conhecer. Apetece passar em revista os dois argumentos. É espantoso saber-se que é mais grave a violação de uma criança de treze anos do que uma criança de seis anos. As leis andam-me esquecidas, mas ainda tenho uma vaga recordação que a punição deste crime não faz distinção entre escalões de idades das vítimas. Por outro lado, é ainda mais assombroso dizer que o crime merece redução de pena porque a erecção da vítima deixa perceber consentimento. O magistrado fala com conhecimento de causa?
E depois há o patético mundo do direito que julga saber de tudo e mais alguma coisa, o direito que tem a pretensão de meter colheradas noutras ciências. O direito e os seus actores deviam ter a humildade intelectual de reconhecer que são leigos noutras ciências. E que, como leigos, deviam socorrer-se de especialistas para não serem apanhados na revelação da sua ignorância. Uma justiça que percorre os caminhos da ignorância entra em auto-negação com o que deve produzir – justiça. Se há dois dias tomámos conhecimento do absurdo julgamento do STJ, ontem foi a vez de psicólogos, psiquiatras e sexólogos se pronunciarem. A decisão do STJ foi arrasada. É o que dá a teimosia dos iluminados que se julgam senhores de toda a verdade, de todo o conhecimento. Os especialistas denunciaram o destempero dos argumentos do magistrado. Na prática, a falácia desses argumentos e, por aí, a negação da justiça.
Não hão-de adiantar de nada as exibições de solidariedade corporativa. Os magistrados andam enfadados por estarem no patíbulo da opinião pública. Oh! suprema heresia, que os iluminados vivem numa dimensão à parte. E mesmo não gostando de adágios populares, não resisto a pedir um emprestado: “quem anda à chuva, molha-se”. Se suas excelências os aplicadores da justiça não se querem pôr a jeito, façam um acto de contrição, deixem-se aspergir pela humildade intelectual de quem é tão mortal como os mortais a quem a justiça se destina. Até lá, são os magistrados os principais responsáveis pelo estado comatoso da justiça. Fautores de um dos ingredientes maiores da crise em que mergulhámos.
Hoje escrevo como licenciado em direito. Com vergonha de o ser.
Há alturas em que somos surpreendidos por sentenças mirabolantes. Os magistrados fazem gala em mostrar a sua particular concepção de justiça. Algumas vezes, a opinião pública fica com o travo amargo da injustiça desta justiça. Lá dirão os especialistas que o povo não percebe nada de direito. Os mesmos especialistas que comunicam no típico linguajar hermético dos juristas, idioma que só eles percebem mais o seu raciocínio labiríntico. Esses especialistas vêm lembrar que nem o povo nem a comunicação social podem ajuizar os juízes que proferem sentenças, pelo desconhecimento do “caso concreto”. Na linguagem dos mortais, isto traduz-se numa ideia: a magistratura plana acima dos mortais, intocável do alto da sua sapiência que rivaliza com as divindades. Em alguns juízes haverá o íntimo desejo de censura prévia, para impedir que a justiça venha parar à comunicação social.
O último despautério partiu do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), o tribunal que está no topo da hierarquia dos tribunais (descontado o politizado Tribunal Constitucional). Decidiu reduzir a pena de um indivíduo condenado por violação reiterada de uma criança de treze anos. A imprensa deu a conhecer excertos do acórdão do STJ. A composição tresanda a ditirambo, pela soez argumentação congeminada pelo juiz-conselheiro que redigiu o acórdão. Retive duas justificações. Primeiro, não é a mesma coisa violar uma criança de treze anos e uma criança de seis anos. A última hipótese seria muito mais grave. Segundo, parece que ficou provado que a vítima tinha erecções, o que prova consentimento.
Eu acho que os juízes deviam passar pelo crivo de um aturado exame psicológico. Com alguma periodicidade, não apenas quando estivessem a fazer o tirocínio para chegarem a juízes. A avaliação psicológica servia para despistar comportamentos desviantes entre a magistratura. Com o propósito de impedir que a justiça seja inquinada por personalidades doentias que tropeçam no absurdo da argumentação como a que foi dada a conhecer. Apetece passar em revista os dois argumentos. É espantoso saber-se que é mais grave a violação de uma criança de treze anos do que uma criança de seis anos. As leis andam-me esquecidas, mas ainda tenho uma vaga recordação que a punição deste crime não faz distinção entre escalões de idades das vítimas. Por outro lado, é ainda mais assombroso dizer que o crime merece redução de pena porque a erecção da vítima deixa perceber consentimento. O magistrado fala com conhecimento de causa?
E depois há o patético mundo do direito que julga saber de tudo e mais alguma coisa, o direito que tem a pretensão de meter colheradas noutras ciências. O direito e os seus actores deviam ter a humildade intelectual de reconhecer que são leigos noutras ciências. E que, como leigos, deviam socorrer-se de especialistas para não serem apanhados na revelação da sua ignorância. Uma justiça que percorre os caminhos da ignorância entra em auto-negação com o que deve produzir – justiça. Se há dois dias tomámos conhecimento do absurdo julgamento do STJ, ontem foi a vez de psicólogos, psiquiatras e sexólogos se pronunciarem. A decisão do STJ foi arrasada. É o que dá a teimosia dos iluminados que se julgam senhores de toda a verdade, de todo o conhecimento. Os especialistas denunciaram o destempero dos argumentos do magistrado. Na prática, a falácia desses argumentos e, por aí, a negação da justiça.
Não hão-de adiantar de nada as exibições de solidariedade corporativa. Os magistrados andam enfadados por estarem no patíbulo da opinião pública. Oh! suprema heresia, que os iluminados vivem numa dimensão à parte. E mesmo não gostando de adágios populares, não resisto a pedir um emprestado: “quem anda à chuva, molha-se”. Se suas excelências os aplicadores da justiça não se querem pôr a jeito, façam um acto de contrição, deixem-se aspergir pela humildade intelectual de quem é tão mortal como os mortais a quem a justiça se destina. Até lá, são os magistrados os principais responsáveis pelo estado comatoso da justiça. Fautores de um dos ingredientes maiores da crise em que mergulhámos.
Hoje escrevo como licenciado em direito. Com vergonha de o ser.