8.5.07

O que o fumo baço deixa ver


Saltavas do eléctrico em andamento. Não podias esperar que se detivesse na paragem, tanta a voragem pela vida. A adrenalina da juventude. E, no entanto, longos anos haviam passado desde que te despediste dos loucos tempos da adolescência. Que, em ti, tinham sido de uma perturbante quietude. Eras elogiado pelo remansoso mar em que navegavas, nos anos de profícuas experiências que renegaste. Eras o menino exemplar, o paradigma dos progenitores a quem nunca houvera mercê de inquietações. Só tarde reprovaste esses anos abúlicos. Só tarde houve a ânsia de reparar o erro. A descompasso com a idade, pouco complacente com desvarios extemporâneos.

Havia, nesses tempos de correria contra o mordaz tempo, uma lucidez inexplicável. Querias reter todos os poros das pessoas amadas. Querias tê-las entre ti, no teu regaço, saciá-las de beijos. Parecia que desconfiavas que o tempo se esgotava no dia seguinte e tudo em ti chamava a viver todos os instantes como se fossem os últimos. Sim, havia possessão. Os olhos eram um mar de chamas onde se deitava a intensidade dos sentimentos. Nunca percebias que a seriedade da entrega era conselheira da desfortuna. Só depois de impiedosas desilusões, o amadurecimento aterrou. Sem surpresa, o desassossego da alma trouxe um turbilhão de sensações, um amplexo torturante de reacções perante desditas e venturas. Da entrega ao desinteresse, um largo passo no limiar do precipício. Parece que houve em ti um esfriamento brutal, uma luz que se apagou para o que outrora luziu tão intenso. Do alto de ti, convencido que era coisa alternativa: nem desinteresse, nem domado fulgor; só a madura idade que vinga no fôlego do discernimento.

Desdém pelo passado, não que haja tentativa para o turvar. Nem fuga em frente, despojado de projectos, somente sequioso dos dias que ainda restam conhecer: a cortante curiosidade de ver o que eles trazem. Continuas a querer saltar dos eléctricos em andamento. Disse o progresso que o não farias: escasseiam os eléctricos e vês-te prisioneiro do carro. Das pessoas, dizes que te desenganaste. Cultivas a distância como método. E ainda que te recuses a desconfiar, ergues um alto muro que te traz uma arrogante aura inacessível. Há em ti as ondas do oceano que te apraz. Elas ecoam melodias que não ouves na praia, aquelas que imaginas nos sonhos que se entretecem nos sonos vagos.

Deitas-te a filosofar: como acreditas no pessimismo antropológico. Em momentos de diferente lucidez, interrogas-te se acaso essas convenções não são um artifício que edificas, um refúgio onde te sentes protegido. Mas não o lugar onde vives, nem as pessoas que te rodeiam. Serão as convenções que o conforto das ideias alimenta? A meio do exercício, a desorientação apodera-se. Partes em demanda dos montes e vales, da solidão da natureza agreste escondida em serranias alcantiladas. Lá buscarás, na solidão protectora vizinha dos penedos, matéria-prima para o apaziguamento das ideias que trovejam dentro da cabeça, que espalham uma feérica tempestade cerebral que te consome o sono. O sono atormentado.

Agora são outros os eléctricos que ousas saltar. Eléctricos mais altos, mais ruidosos, tentaculares nos desafios, eléctricos que às vezes viajam sem passageiros. E sem condutor. De resto, um vagão singular que sabes ser tu o timoneiro. As rosáceas perfumadas, segue-as entre o caminho incerto ao errares entre as veredas deslumbrantes onde se mistura o verde da vegetação com a bruma da manhã que tarda em levantar. É nessa luz baça que vagueias sem destino, apenas recolhendo as pétalas zurzidas pelo varapau dos pastores distraídos. Jazem entre as pedras espalhadas pelo caminho, as pétalas que ainda exalam o seu perfume inconfundível. Dirás que conseguias prosseguir de olhos fechados, imprimir o rumo do teu vagão no rasto das pétalas estendidas. Elas são o chão que desembacia o lugar incerto onde hás-de, por fim, desaguar. Lá onde, esperas, nidifique um vasto campo de flores, muitas as espécies de flores, na policromia que incensa os olhos. A luz deixará de ser baça – e mesmo que teime, a luz baça há-de emoldurar a clareza dos teus dedos que se passeiam diante dos olhos, ondeando os fragmentos esparsos que as páginas dobradas trazem à memória. Perceberás: o tempo perpetuado não cauciona arrependimentos. Nem há que viver depois o que não houve mister de levar no tempo devido.

À tua maneira, com a fluência diferente dos ponteiros do relógio que se apressam, hás-de teimar em saltar dos eléctricos em andamento, sem pesar os riscos que abraças. E aí descobres que queres eternizar a adolescente condição.

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