23.5.07

A procissão das carcaças


Bem cedo, ainda alvorada, poucas as pessoas que andam pelas ruas. É quando as carcaças dos porcos são descarregadas do camião frigorífico para o talho da esquina. Uma e outra, levadas em ombros pelos homens do talho, numa procissão contínua que convoca os poucos olhares curiosos. Há, naquele ritual, o sombrio espírito humano que sacia a curiosidade com a morte alheia. A sacralização da morte.

Tudo é feito na luz baça da manhã. Diria que é o pudor aviltante, para evitar que uma multidão desvie o olhar para os cadáveres esbranquiçados das reses no percurso entre o camião e a porta dos fundos do talho. Tudo combinado na necessidade da hora prematura. Para serem poucos os que, a caminho do trabalho, encaram o grotesco retrato das carcaças inertes em procissão ritmada no caminho longínquo aprazado para a sua mesa. Os corpos seccionados dos porcos desfilam em plena cidade, emprestando bestialidade à função.

Há sensibilidades que variam na complexidade das tão diferentes personalidades. Há os que se divertem na hedionda matança do porco, com vinho a jorrar e cantares ao desafio enquanto o animal é sangrado, guinchando desesperadamente até as forças se consumirem no traço final da morte. Os que são mais atreitos às tradições inamovíveis logo virão esgrimir o argumento da tradição popular como defesa do costume da matança do porco. A tolerância perante o argumento não chega para reprimir o meu, que vem em sentido contrário. Tudo me parece um sórdido espectáculo que, no fundo, ultraja a natureza humana. Não, não é o porco que é aviltado, na sua instrumentalização diante do comprazimento dos Homens. São os próprios Homens que cavam a sepultura da sua indignidade.

E como há sensibilidades tão variadas, haverá quem não abrande o passo quando vê àquela hora madrugadora as carcaças dos porcos a caminho de serem desmembradas pela faca afiada do talhante. Como há quem se impressione com a procissão macabra dos cadáveres dos porcos partidos em dois, na longitudinal, a serem tirados do camião frigorífico por um trabalhador para os ombros do comparsa que, dobrado pelo peso, se encaminha a passo lento para o interior do talho. Um espectáculo gratuito, a morte desfilando diante dos olhos. Na heterogénea sensibilidade, haverá quem espicace a gula antecipando iguarias que aquela carcaça, depois de desconjuntada, virá depositar no seu prato. Enquanto outros, no encontro marcado entre o olhar e a descarga das carcaças, não conseguem reprimir a perturbação pela imagem que passa diante dos seus olhos. Ainda que não tenham ido no encalço da vegetariana dieta, o espectáculo fúnebre da procissão das carcaças não será o idílico quadro para descerrar os alvores do dia.

Na diversidade dos povos, mudam as tradições, as culturas. Há os povos que não consomem porco, como os que entronizam vacas num altar sagrado. Há aqueles que, de espírito aberto, educam as papilas gustativas para uma variedade imensa de bichos. Os asiáticos são conhecidos pela sortida de animais que entram na sua dieta. Basta ir a Londres, ao Soho, para testemunhar a reprodução do ambiente gastronómico chinês. Nos restaurantes, as montras são oráculos que ostentam patos, galinhas, lulas gigantes. Todos em forma de cadáver, já cozinhados. Os patos e as galinhas de corpo inteiro, assim cozinhados, para estranheza dos ocidentais habituados a decepá-los antes de os deitarem no leito onde são cozinhados.

Já ouvi comentários de ocidentais horrorizados com estes hábitos asiáticos. E, no entanto, do alto do seu etnocentrismo indisfarçável, não lhes ocorre a bestialidade que é a procissão das carcaças de porcos seccionadas em duas metades no percurso curto entre o camião frigorífico e as portas do talho. Ao etnocentrismo adiciona-se a variante que aqui colhe proveito: o antropocentrismo que educa o Homem na sua superioridade, por ser o único dos animais na posse de faculdades racionais. Dizem: é a necessidade de sobrevivência que de nós faz seres carnívoros, que leva ao necessário sacrifício de animais que foram talhados para amesendar a nossa dieta. E porventura, pelo conforto do quadro mental, alguns participam na procissão das carcaças como se ali não houvesse o menor traço de selvajaria. Da selvajaria humana que, afinal, deprecia as intrínsecas qualidades de superioridade da espécie que os antropocêntricos militantes apregoam.

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