14.5.07

Do “amor casto”


O que há de enternecedor nas visitas papais é a pregação do anacrónico. Que a igreja está cada vez mais desfasada da realidade, até um cego será capaz de sentir. E se a igreja anda alarmada pela crise de missões, pelo emagrecimento do rebanho, pela crise de missionários que se alistem para (continuar a) espalhar a fé, duvido que a retórica de sacristia bafienta seja a melhor estratégia.

Convém esclarecê-lo: não que me importe com o sucesso ou o fracasso do devir da igreja. É-me indiferente que a igreja católica compulse mais ou menos militantes. Ou que influencie mais ou menos um país que, por lei, é laico mas arreigadamente católico nos costumes, ainda que sancionados pelas autoridades que deviam fazer cumprir a lei que sanciona a separação entre Estado e confissões religiosas. Eis como as leis, uma vez mais, são feitas para o seu quotidiano atropelo. O anarquista que há em mim exulta quando as leis, espelho da autoridade do Estado, existem para o contínuo desrespeito. É a autoridade do Estado que se esvazia.

Regresso ao anacrónico catolicismo. Alguns comentadores têm sublinhado o retrocesso da igreja com a entronização do papa Bento XVI. Alegam que é mais conservador que os anteriores papas. Na linearidade do seu raciocínio, o facto de a igreja resvalar para o conservadorismo é um retrocesso. Declino o argumentário linear, o raciocínio simplista. Prefiro decifrar a retórica papal, os discursos de bispos e padres que vão tecendo a palavra da igreja – e produzindo doutrina que cimenta os dogmas que se impõem sobre o livre arbítrio dos crentes. Faço-o sem a tentação dos rótulos. Não me interessa saber se há mais ou menos conservadorismo na igreja católica, até porque esses rótulos costumam vir de braço dado com o oportunismo ideológico.

O papa anda em périplo pelo Brasil. Pregou a habitual moral católica, indicando aos jovens brasileiros o caminho da virtude: o “amor casto”. Que a igreja combata com denodo o hedonismo e a materialização dos afectos, compreende-se: a sublimação do espiritual não se compadece com a fatuidade do efémero. A entrega aos sentimentos que cultivam prazeres espirituais, isso sim, alimenta recompensas que se prolongam no tempo. Só que os sacerdotes passam ao lado do essencial, pela enésima vez: idealizam um mundo que é apenas isso mesmo, um ideal, tão utópico quanto divorciado da realidade. Pode ser essa a sua aspiração, convencer os jovens que o despojamento do sexo é fundamental para recuperar a primazia dos sentimentos genuínos. Não fosse uma pregação no deserto, e a igreja atingiria o objectivo: derrotaria então as forças demoníacas do hedonismo, do relativismo, do pérfido individualismo que amiúde degenera em autofágico egoísmo.

Lamentavelmente – para os desígnios da igreja – o mundo de hoje é uma imagem bem diferente da idealizada pelos sacerdotes. Podem aspirar a castrar a sexualidade dos jovens. Só não percebo se o fazem em nome de valores que interiorizam na sua dogmática (regressar à pureza dos sentimentos, com abdicação dos prazeres efémeros) ou em nome da consabida intrusão na esfera individual (perdurando a lógica de entrega do eu à causa da igreja). Seja como for, a mensagem que aconselha o “amor casto” significa uma castração dos jovens. Quase como se fosse uma castração química, que me pergunto se não é secretamente imposta a todos os que entram para o sacerdócio católico, convidados a abdicar dos prazeres carnais. (Claro que havia aqui lugar a um interlúdio, para recuperar estórias de padres de província que mantêm um secreto harém entre as beatas que se põem a jeito, na desigual relação entre o sacerdote e as devotas que se entregam; mas não é isso que está em causa.)

Debaixo dos seus paramentos, os curas continuam convencidos que podem interferir na vida íntima dos membros do rebanho. Há uma obediência imposta pela igreja: os fiéis devem respeito aos dogmas enunciados, devem pautar os comportamentos pelas ordens ditadas pelo papa e conselheiros. E mesmo que perorem sobre temas que, pelos mesmos preceitos que invocam, teoricamente desconhecem, não faz sentido semear a castração dos crentes. O que vale é que as hormonas dos jovens, mesmo dos arreigados católicos, falam mais alto. Sobra o patético apelo que nos traz de volta aos tempos de antanho, onde ainda não se falava da libertação sexual das pessoas.

Esta é uma igreja cheia de prisões mentais. Uma igreja que teima em invadir a intimidade dos fiéis, para cimentar a obediência destes e assim reforçar a sua autoridade. Ainda assim, a pregação papal por terras do Brasil trouxe um refrescamento das ideias: ao falar do amor casto, deixa espaço para os jovens se socorrerem dos prazeres carnais dos profissionais do sexo. É que o papa só invocou o “amor carnal”. Suponho que fora do amor, os prazeres da carne não sejam proibidos. Sem dar conta, eis a igreja na linha da frente da legalização da prostituição. Portanto, o papa Bento XVI não é assim tão conservador como o pintam.

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