30.5.07

Pelos mártires da greve geral



(Copyright: Brigitte Boitel Bonfils)

Este é um texto reaccionário.

Dia de greve geral. Dia para lembrarmos que os sindicatos mais anacrónicos da Europa têm pouso entre nós. Dia para as batalhas de números, testemunhas da ilusão estatística e da manipulação das cifras de grevistas pelos sindicatos e pelo governo. Já agora, que se aplauda a sensatez de algumas pessoas que não se deixam iludir pelo tenebroso maniqueísmo deste governo que vai, de deriva em deriva totalitária, atropelando liberdades. A Comissão Nacional de Protecção de Dados impediu a identificação dos grevistas, como o governo pretendia. Quando soube da intenção do governo, confesso que se fosse funcionário público teria pela primeira vez na vida pensado na hipótese de fazer greve. Apesar de ser “reaccionário” (como o texto de hoje há-de comprovar), apesar de não me rever um milímetro que seja nas causas sindicais.

Também confesso que me perturbam os argumentos ancorados na rigidez intelectual. É o que se passa quando se discutem os direitos dos trabalhadores. Fala-se muito nas regalias de quem trabalha, cimentando-se uma retórica que pastoreia direitos adquiridos. É de bom-tom advogar os direitos adquiridos, ou temos “retrocesso civilizacional”. Acredito que o fazem na suposição de que os “patrões” são todos, sem excepção, diabólicas entidades que se dispõem a oprimir os trabalhadores. Hão-de fiar-se que os “patrões”, se pudessem, instituam a escravatura, o trabalho infantil, cortavam salários pela metade, proibiam férias, obrigavam os trabalhadores doentes à jorna. O problema deste maniqueísmo é o de todos os maniqueísmos: excessivo e míope.

Manter uma discussão com argumentos que mostram inflexibilidade intelectual fermenta um monólogo. Não se equaciona repensar os pressupostos da lógica sindical, do excessivo proteccionismo dos direitos dos trabalhadores que vem nas leis do trabalho e que vitupera os “patrões”; é a lógica do “é assim, porque sim”. O hermetismo mental impede a discussão. Entramos no domínio do tabu. Por definição, sou avesso a tabus.

Não vou indagar as motivações da greve geral de hoje, se a razão assiste aos sindicatos ou ao governo. Não me apetece fazê-lo. Por um lado, porque seria necessário percorrer a via-sacra dos dossiers polémicos que dividem sindicatos e governo. Teria que argumentar que o governo peca por defeito: que lhe falta coragem para ir mais longe e cortar a direito nos privilégios obscenos dos funcionários públicos. Se estas palavras fossem escutadas por sindicalistas, teria que aguentar rótulos pouco simpáticos – “fascista”, “reaccionário”, “a soldo do capital”, etc. E não me apetece, apesar de não me incomodar a hipótese. Vindas de onde vinham, essas acusações seriam melodia para os meus ouvidos. Por outro lado, estar do lado contrário da barricada sindical pode ser entendido como um alistamento no governo, o que quero evitar a todo o custo. Imaginá-lo tira-me o sono. Acho que é suficiente o que já afirmei atrás – o governo devia ir mais longe no corte de regalias – para mostrar que estar contra os sindicatos não implica um apoio ao governo.

Mais importante é olhar, por um instante que seja, para os direitos dos mártires da greve. As pessoas que querem ir trabalhar: ou porque não se revêem na causa grevista, ou porque não podem prescindir do salário de um dia de trabalho. E que chegam atrasadas. E que têm que acordar sabe-se lá quanto tempo mais cedo. E que têm que enfrentar filas intermináveis para apanhar o transporte público, que se demora porque houve sindicatos que se acham senhores da lei e não cumpriram os serviços mínimos. E que penam ainda mais no trânsito de acesso às grandes urbes, porque as estradas estão entupidas. E que batem com o nariz na porta das repartições públicas, adiando a absurda burocracia que estava agendada para hoje. E que se deslocam ao hospital em vão, anulada a consulta por que estiveram à espera meses a fio, aguentando agora outro tanto até voltarem a ser atendidas (se não morrerem entretanto, insignificante detalhe para os sindicatos).

Alguém zela pelos interesses desta imensa maioria silenciosa? Alguns, enquanto sentem na pele os efeitos da greve, colocam-se ingenuamente ao lado de quem atormenta o seu dia. Todos temos direito a dar tiros no pé. Para os demais – os que suportam a arrogância dos sindicatos; os que ficam reféns de uma greve que, afinal, atropela o seu direito a trabalhar; os que começam mal o dia e nem sabem como ele vai terminar, quando vão conseguir chegar a casa – só direitos desvalidos. São os órfãos da democracia vigente.

Nunca ninguém se lembrou de formar um sindicato que proteja os seus direitos. Um sindicato dos mártires da greve, ah! ideia subversiva.

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