Há dias assisti na RTP 2 a uma série de humor que me pôs a pensar sobre uma das maiores virtudes que uma pessoa pode ter. The Kumars é o nome da série. Percebi que se filia no estilo britcom, com o selo da BBC. Mas uma britcom especial: feita por actores de origem indiana, passava todo o tempo a satirizar os indianos. Era uma refinada auto-sátira.
Daí que me tenha posto a pensar na capacidade de auto-satirizar como uma das virtudes maiores. É preciso muita ginástica mental para o fazer. Nos tempos modernos, em que as cabeças bem pensantes ensinam aos seguidores que cada um de nós é intocável, como se fosse proibido sinalizar os podres ou as fraquezas que nos expõem à chacota alheia, há carência desse poder de encaixe. Só é permitido troçar dos outros; quando somos derriçados, fala mais alto a ofensa e, por vezes, a virulenta defesa de honra.
Os comediantes escarneciam de certos aspectos que formalizam a idiossincrasia indiana. Parodiavam com danças típicas, onde as mulheres ensaiam uma coreografia que, aprendia-se na comédia, era a antítese do erotismo. Um sketch dava pano para mangas a atarefados sociólogos: dois casais de origem indiana conviviam num meio social aburguesado, onde abundavam os trejeitos tão tipicamente britânicos. Para os de origem indiana era imperativa a inserção social, para que os outros os vissem como um deles, sem distinção de raça, cor, credo ou origem geográfica. Mas mais para que eles mesmos se convencessem que o fio que os prendia às raízes indianas era ténue, prestes a romper-se com a aceitação no meio social tão tipicamente britânico. A certa altura, um dos anfitriões fez chalaça usando o termo “asiáticos”. Ofendidos, os convidados indianos retiraram-se da festa. Indignados, despediram-se dizendo que não gostavam de ir a lugares frequentados por asiáticos.
Talvez sociólogos empenhados numa análise aprofundada do sketch chegassem a conclusões elaboradas. E denunciassem o desenraizamento dos indianos, que à força se queriam fazer passar por genuínos britânicos quando o não eram. Outros poderiam apelar ao emergente multiculturalismo, sublinhado como aquele sketch era o sinal dos tempos em que vivemos, a simbiose entre pessoas de múltiplas raças e cores, o autêntico melting pot que é a cidadania de certos países. Eu limito-me a interpretar o humor em toda a sua sublimação. E a aplaudir a capacidade dos actores indianos para folgarem com o que são. Só os espíritos acabrunhados conseguirão ver neste humor o desmerecimento das raízes, como uma esponja que zurze nas idiossincrasias de um povo.
A falta de poder de encaixe para satirizarmos de nós mesmos é um dos sinais da mesquinhez impante. Há coisas intocáveis; com elas é proibido brincar, absolutamente proibido. São as reminiscências de uma cultura entediante, sombria, cinzenta, acabrunhada. Sem se dar conta, a ausente auto-sátira é a imagem que cada um de nós constrói de si, elevado a um altar sagrado, quase como nos considerássemos deificadas entidades. Ainda somos dominados pela cultura do respeitinho, que se não for acatado pode levar por caminhos desagradáveis. Há cominação feroz para os que ousarem dissidir do respeitinho: a sugestão da animalesca violência que repõe, à força, o respeitinho no seu lugar.
Estes são tempos de muitas vacas sagradas, aparentemente imunes à sátira alheia. É a igreja católica, políticos que não encaram olimpicamente o humor que deles zurze, o lobby gay que acertadamente batalha pelos seus direitos e logo de seguida destila intolerância em relação a manifestações que consideram homofóbicas. Há dias li no El Pais que uma associação de defesa dos homossexuais se empenhou em proibir a segunda actuação de um artista em Barcelona devido ao conteúdo que deslizava frequentemente para a homofobia. Não sei se os homossexuais ganhariam mais respeito e simpatia (dos heterossexuais) se descobrissem poder de encaixe ao humor que os satiriza, sem chegar ao ponto de os desrespeitar. Quando se exige muito respeitinho e a gritaria ensurdece através dos protestos contra a sátira que saem à rua, é a razão que se esfuma.
Para mim, tudo é passível de sátira. Tudo, sem excepção. Só assim teremos oportunidade para sair do buraco que é a nossa vida quotidiana. É o ensejo para que o humor seja cultivado todos os dias, sabendo que hoje somos fautores do humor e amanhã poderemos ser os alvos da sátira de outros. Sem drama, nem sequer a patética reacção em defesa da honra, como se a sátira desonrasse alguém.
Daí que me tenha posto a pensar na capacidade de auto-satirizar como uma das virtudes maiores. É preciso muita ginástica mental para o fazer. Nos tempos modernos, em que as cabeças bem pensantes ensinam aos seguidores que cada um de nós é intocável, como se fosse proibido sinalizar os podres ou as fraquezas que nos expõem à chacota alheia, há carência desse poder de encaixe. Só é permitido troçar dos outros; quando somos derriçados, fala mais alto a ofensa e, por vezes, a virulenta defesa de honra.
Os comediantes escarneciam de certos aspectos que formalizam a idiossincrasia indiana. Parodiavam com danças típicas, onde as mulheres ensaiam uma coreografia que, aprendia-se na comédia, era a antítese do erotismo. Um sketch dava pano para mangas a atarefados sociólogos: dois casais de origem indiana conviviam num meio social aburguesado, onde abundavam os trejeitos tão tipicamente britânicos. Para os de origem indiana era imperativa a inserção social, para que os outros os vissem como um deles, sem distinção de raça, cor, credo ou origem geográfica. Mas mais para que eles mesmos se convencessem que o fio que os prendia às raízes indianas era ténue, prestes a romper-se com a aceitação no meio social tão tipicamente britânico. A certa altura, um dos anfitriões fez chalaça usando o termo “asiáticos”. Ofendidos, os convidados indianos retiraram-se da festa. Indignados, despediram-se dizendo que não gostavam de ir a lugares frequentados por asiáticos.
Talvez sociólogos empenhados numa análise aprofundada do sketch chegassem a conclusões elaboradas. E denunciassem o desenraizamento dos indianos, que à força se queriam fazer passar por genuínos britânicos quando o não eram. Outros poderiam apelar ao emergente multiculturalismo, sublinhado como aquele sketch era o sinal dos tempos em que vivemos, a simbiose entre pessoas de múltiplas raças e cores, o autêntico melting pot que é a cidadania de certos países. Eu limito-me a interpretar o humor em toda a sua sublimação. E a aplaudir a capacidade dos actores indianos para folgarem com o que são. Só os espíritos acabrunhados conseguirão ver neste humor o desmerecimento das raízes, como uma esponja que zurze nas idiossincrasias de um povo.
A falta de poder de encaixe para satirizarmos de nós mesmos é um dos sinais da mesquinhez impante. Há coisas intocáveis; com elas é proibido brincar, absolutamente proibido. São as reminiscências de uma cultura entediante, sombria, cinzenta, acabrunhada. Sem se dar conta, a ausente auto-sátira é a imagem que cada um de nós constrói de si, elevado a um altar sagrado, quase como nos considerássemos deificadas entidades. Ainda somos dominados pela cultura do respeitinho, que se não for acatado pode levar por caminhos desagradáveis. Há cominação feroz para os que ousarem dissidir do respeitinho: a sugestão da animalesca violência que repõe, à força, o respeitinho no seu lugar.
Estes são tempos de muitas vacas sagradas, aparentemente imunes à sátira alheia. É a igreja católica, políticos que não encaram olimpicamente o humor que deles zurze, o lobby gay que acertadamente batalha pelos seus direitos e logo de seguida destila intolerância em relação a manifestações que consideram homofóbicas. Há dias li no El Pais que uma associação de defesa dos homossexuais se empenhou em proibir a segunda actuação de um artista em Barcelona devido ao conteúdo que deslizava frequentemente para a homofobia. Não sei se os homossexuais ganhariam mais respeito e simpatia (dos heterossexuais) se descobrissem poder de encaixe ao humor que os satiriza, sem chegar ao ponto de os desrespeitar. Quando se exige muito respeitinho e a gritaria ensurdece através dos protestos contra a sátira que saem à rua, é a razão que se esfuma.
Para mim, tudo é passível de sátira. Tudo, sem excepção. Só assim teremos oportunidade para sair do buraco que é a nossa vida quotidiana. É o ensejo para que o humor seja cultivado todos os dias, sabendo que hoje somos fautores do humor e amanhã poderemos ser os alvos da sátira de outros. Sem drama, nem sequer a patética reacção em defesa da honra, como se a sátira desonrasse alguém.
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