22.5.07

Esta é a verdade


Ouvi esta expressão da boca de uma eurodeputada comunista. À exaustão. Num discurso circular, cheio de redundâncias, cheio de desvios por assuntos que nem colaterais seriam para as perguntas colocadas. A retórica de sempre. Que tenta convencer a audiência pelo cansaço. Entrecortando o discurso com expressões chave que caem, bombásticas, despertando a atenção da audiência. Uma e outra vez, culminava o raciocínio sentenciando “esta é a verdade”. Não deixava margem de manobra a quem a tinha interrogado, por vezes com perguntas incómodas das quais tinha dificuldade em se desenvencilhar. Pedra sobre o assunto com a mágica expressão: “esta é a verdade”. Sem contraditório.

Debates assim são desequilibrados. Não espanta que os políticos se deliciem com estas discussões assimétricas, em que adoçam a boca da audiência com a possibilidade de levantarem interrogações, mas nunca contra-interrogações que seriam desconfortáveis e lá viriam abalar o pedestal onde suas excelências se colocam. Sobra o apaziguamento das consciências dos políticos: consideram-se escrutinados pelo público a quem é dada a hipótese de lavrar questões. Suspeito que esta é uma democracia pela metade. Sem contraditório, quem fica com a última palavra no bolso são os interrogados.

Debates assim são uma falácia: ao saberem que não vão ser contra-interrogados, os políticos sentem a pulsão de coroar as suas palavras com mentiras ou raciocínios que se distanciam do rigor. O público desinformado só retém as derradeiras palavras dos representantes da classe política. Quando elas vêm enfeitadas com sentenças incontestáveis (“esta é a verdade”), é como se fossem palavras debruadas por um manto divino, palavras insofismáveis. A verdade sem contestação. Aos políticos, a pedra derradeira que coroa “a verdade”.

Esta retórica afirmativa semeia um mar de dúvidas em mim. Quando alguém sente a necessidade de encerrar o discurso com a sentença assertiva que identifica “a verdade”, é porque algo está errado. Ou o discursante sabe que a verdade se situa algures, mas é conveniente distorcê-la para a trazer para a sua barricada, num mero oportunismo táctico que se afasta dos alvores da verdade (se é que ela existe…). Ou é um mero expediente retórico para hipnotizar a audiência, tratando de assegurar que as enfáticas palavras ditas (“esta é a verdade”) levam a mensagem ao destinatário. Levam-na embrulhada com a convicção das palavras fortes. O suficiente para dobrar as hesitações dos mais dúbios, conquistando adeptos para a causa.

Por sorte (que é desdita para os que enfeitam o discurso com fórmulas tão assertivas), há quem esteja informado. Há quem não esteja distraído. E quem não se deixe derrotar pelas palavras matraqueadas em sucessivas derivas do tema. A banha da cobra só a compra quem quer: os que estão convictos da sua terapêutica, os que andam aligeirados pela vida e se convencem da primeira patacoada oferecida, os distraídos. Não me espanta que a eurodeputada comunista tenha seguido pelos caminhos da “verdade” que é a que ela espalha, sem lugar a dissidências. Sei os pergaminhos democráticos dos camaradas, como são educados para não tolerar os que pensam de maneira diferente. Quem diz, de forma tão enfática, “esta é a verdade”, não contempla a hipótese de haver quem pense de maneira diferente. A senhora deveria dizer: “esta é a minha verdade”, ou “esta é a verdade como eu a vejo”. A fórmula faria a diferença.

Diante destes sacerdotes da verdade, sinto uma vontade indomável para tomar a via do antagonismo. Nem que seja por irracional reflexo, como se fosse um reflexo condicionado, atraído pelo lado contrário da verdade tão categórica. Há por aí cultores da verdade tão certeira – os comunistas, como alguns que de outras paragens pregam a verdade à sua maneira – sem admitirem (uns e outros) que alguém possa ver o mundo com outras lentes. Aos que crescem do alto da sua “autoridade intelectual” e garantem que “esta é a verdade”, a resposta que merecem é a provocante certeza que nada é verdadeiro, um lampejo da dolorosa (para eles) relativização de tudo.

Mas, no fundo, sinto comiseração dos comunistas que prosseguem o seu sacerdócio, quase em isolamento, quase órfãos. É sintomático quando a urgência em certificar “a verdade” é tanta. Nisso, não há grande diferença para os peões do culto das testemunhas de Jeová, também enfáticos na “verdade” que pregam. A única coisa que muda é “a verdade”.

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