O povo ajuíza que aos grandes males prescrevem-se grandes remédios. A democracia, ensinam-nos, é o governo do povo para o povo. Faz sentido que certas políticas públicas sejam o espelho da insensatez que costuma andar de braço dado com o povo. Só falta, um dia destes, a justiça ser inquinada por essa excrescência que se chama “justiça popular”. Até lá, vamo-nos entretendo com outras medidas gizadas com o compasso da brutalidade das gentes impreparadas.
Na última visita a Madrid deparei com três cenários fantasmagóricos montados em locais carismáticos: na Puerta del Sol, na Plaza Mayor e em frente ao Palácio Real, o aparato do que restava de acidentes rodoviários. O cenário retratava o mais ínfimo detalhe: um sapato de salto alto jazendo ao pé da porta dobrada do Jaguar, que embateu contra um Renault onde viajava uma família com um bebé cuja vida se salvou por ir instalado numa cadeirinha de segurança; uma luva ensanguentada do paramédico, deixada junto aos restos do Jaguar; os destroços de um BMW que se enfaixou num rail – e até pedaços do rail estavam junto da carcaça do veículo! – misturados com um telemóvel despedaçado. Que, reza a dramática mensagem, tinha sido responsável pelo acidente. Para o realismo ser completo, só falavam os corpos das vítimas.
A mensagem é subliminar. Perante a alta sinistralidade rodoviária, o melhor remédio é chocar as consciências. Espalhando o rescaldo de acidentes rodoviários, com um realismo arrepiante, uma frieza que actua como um seco soco no estômago de quem se abeira da dantesca encenação. Lá diria o povo, outra vez chamado a pronunciar-se: se não vai a bem, vai a mal. Através do choque de consciências de quem não consegue passar indiferente ao insólito que enfeita aqueles emblemáticos locais de Madrid. Decerto as autoridades tencionam colocar as imagens terríficas no subconsciente das pessoas que ali confluem – e são muitas, pela centralidade dos locais, por serem atracções turísticas.
Podem alguns achar que a medida não é desproporcionada. Há quem advogue que a elevada sinistralidade rodoviária é uma espécie de terrorismo, com vidas inocentes ceifadas pela imprevidência de alguns. Os que condescendem com a lancinante encenação instalada naquelas praças madrilenas, convocam o princípio, tão em moda, de que os meios hão-de justificar os fins. Dirão: se isto servir para baixar o número de mortos nas estradas, não há-de ter sido em vão. E se houver pessoas mais sensíveis, desconfortáveis com as terríveis imagens que reproduzem os acidentes, saibam elas que o mostruário de destruição terá salvado vidas se alguns passaram a ser mais prudentes ao volante.
Nos três locais, o cenário é uma crueza impressionante. Falta o cheiro dos fluidos dos automóveis espalhados pelo asfalto, o odor do sangue que escorre das vítimas ainda presas dentro dos ferros retorcidos. E a azáfama da polícia e dos paramédicos, mais as luzes das ambulâncias que emprestam um dramatismo maior ao acidente. Eu tomo isto como terrorismo intelectual. Ao mesmo tempo, denuncia a capitulação das autoridades. Como são incapazes de educar os condutores para comportamentos cívicos e de segurança na estrada (e tudo devia começar por um ensino capaz, não pela pedagogia dos mínimos que não prepara os condutores), atalham caminho concebendo campanhas que aterrorizam quem frequenta as estradas. Não será difícil imaginar o efeito: pesadelos nas mentes mais sensíveis, ou o regressar ao passado de um acidente que deixou marcas dolorosas, naqueles que já sofreram acidentes viários.
Está na moda o terrorismo intelectual. Os engenheiros sociais que o idealizam consideram que é a última instância para contrariar efeitos nefastos que atingiram dimensões consideráveis. Não interessa a imagem tenebrosa que os cidadãos são forçados a contemplar. As dores de consciência ficam a cargo de cada pessoa, com as reacções que variam com a sensibilidade que é tão subjectiva, tão heterogénea. As autoridades limitam-se a encenar o teatro do sangue e dos automóveis destinados à sucata.
Esta nova forma de arquitectura urbana, no afear das praças que são ex-líbris da cidade, serve para dissimular a verdadeira mensagem: que devemos obediência às autoridades, como se fôssemos um recatado rebanho cujo bem-estar depende da magnanimidade de quem manda. Uma alternativa para semear o terrorismo intelectual que sedimenta dependências. E que fortalece a autoridade de quem detém o poder. Lá no fundo, apenas um exibicionismo estulto, que se acerca do domínio do pornográfico.
Na última visita a Madrid deparei com três cenários fantasmagóricos montados em locais carismáticos: na Puerta del Sol, na Plaza Mayor e em frente ao Palácio Real, o aparato do que restava de acidentes rodoviários. O cenário retratava o mais ínfimo detalhe: um sapato de salto alto jazendo ao pé da porta dobrada do Jaguar, que embateu contra um Renault onde viajava uma família com um bebé cuja vida se salvou por ir instalado numa cadeirinha de segurança; uma luva ensanguentada do paramédico, deixada junto aos restos do Jaguar; os destroços de um BMW que se enfaixou num rail – e até pedaços do rail estavam junto da carcaça do veículo! – misturados com um telemóvel despedaçado. Que, reza a dramática mensagem, tinha sido responsável pelo acidente. Para o realismo ser completo, só falavam os corpos das vítimas.
A mensagem é subliminar. Perante a alta sinistralidade rodoviária, o melhor remédio é chocar as consciências. Espalhando o rescaldo de acidentes rodoviários, com um realismo arrepiante, uma frieza que actua como um seco soco no estômago de quem se abeira da dantesca encenação. Lá diria o povo, outra vez chamado a pronunciar-se: se não vai a bem, vai a mal. Através do choque de consciências de quem não consegue passar indiferente ao insólito que enfeita aqueles emblemáticos locais de Madrid. Decerto as autoridades tencionam colocar as imagens terríficas no subconsciente das pessoas que ali confluem – e são muitas, pela centralidade dos locais, por serem atracções turísticas.
Podem alguns achar que a medida não é desproporcionada. Há quem advogue que a elevada sinistralidade rodoviária é uma espécie de terrorismo, com vidas inocentes ceifadas pela imprevidência de alguns. Os que condescendem com a lancinante encenação instalada naquelas praças madrilenas, convocam o princípio, tão em moda, de que os meios hão-de justificar os fins. Dirão: se isto servir para baixar o número de mortos nas estradas, não há-de ter sido em vão. E se houver pessoas mais sensíveis, desconfortáveis com as terríveis imagens que reproduzem os acidentes, saibam elas que o mostruário de destruição terá salvado vidas se alguns passaram a ser mais prudentes ao volante.
Nos três locais, o cenário é uma crueza impressionante. Falta o cheiro dos fluidos dos automóveis espalhados pelo asfalto, o odor do sangue que escorre das vítimas ainda presas dentro dos ferros retorcidos. E a azáfama da polícia e dos paramédicos, mais as luzes das ambulâncias que emprestam um dramatismo maior ao acidente. Eu tomo isto como terrorismo intelectual. Ao mesmo tempo, denuncia a capitulação das autoridades. Como são incapazes de educar os condutores para comportamentos cívicos e de segurança na estrada (e tudo devia começar por um ensino capaz, não pela pedagogia dos mínimos que não prepara os condutores), atalham caminho concebendo campanhas que aterrorizam quem frequenta as estradas. Não será difícil imaginar o efeito: pesadelos nas mentes mais sensíveis, ou o regressar ao passado de um acidente que deixou marcas dolorosas, naqueles que já sofreram acidentes viários.
Está na moda o terrorismo intelectual. Os engenheiros sociais que o idealizam consideram que é a última instância para contrariar efeitos nefastos que atingiram dimensões consideráveis. Não interessa a imagem tenebrosa que os cidadãos são forçados a contemplar. As dores de consciência ficam a cargo de cada pessoa, com as reacções que variam com a sensibilidade que é tão subjectiva, tão heterogénea. As autoridades limitam-se a encenar o teatro do sangue e dos automóveis destinados à sucata.
Esta nova forma de arquitectura urbana, no afear das praças que são ex-líbris da cidade, serve para dissimular a verdadeira mensagem: que devemos obediência às autoridades, como se fôssemos um recatado rebanho cujo bem-estar depende da magnanimidade de quem manda. Uma alternativa para semear o terrorismo intelectual que sedimenta dependências. E que fortalece a autoridade de quem detém o poder. Lá no fundo, apenas um exibicionismo estulto, que se acerca do domínio do pornográfico.
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