7.5.07

Ri de quê?


Há instantes que entram na intemporalidade. Momentos breves, mas com uma espessa intensidade, que dão corpo a imagens que ficam gravadas no que a memória nunca consegue apagar. Ontem tive um desses momentos. A declaração de derrota de Ségolène Royal.

Há que fazer um registo de interesses: nada me movia nas eleições presidenciais francesas, a não ser uma reacção destrutiva. Por um lado, como não sou eleitor em França nem o escolhido me governa, não me considero legitimado para esvair uma devotada militância como muitos sectores do politicamente correcto por cá fizeram. Por outro lado, o candidato escolhido não conseguiria motivar o meu voto, acaso fosse eleitor em França. Em terceiro lugar, estas eleições captaram alguma atenção apenas pelo gosto de ver a cândida pretendente socialista passar pelo crivo da humilhante derrota. Os seus compagnons de route lusitanos, na necessária solidariedade que a internacional socialista entoa, teceram infindáveis loas à senhora. Uma lufada de ar fresco, diziam. Não pelas ideias, apenas pela cosmética da senhora, o sorriso perene, a simpatia inesgotável; até, para alguns que se acercam da crise da meia-idade, havia em Ségolène Royal o charme discreto que, imagino, nutria sonhos eróticos. Eis toda a essência de uma candidatura que esgotou o manancial da artificialidade. Que me lembre, a senhora Royal foi a coisa mais postiça que a política conheceu.

Não consegui reprimir um gosto malévolo quando vi a declaração de derrota da senhora. Primeiro, porque perdeu (não porque o outro ganhou, que me é indiferente). E depois porque nem na hora da derrota “Ségo” (como era carinhosamente apelidada) se desprendeu daquele sorriso plástico. Ela lia as banalidades do costume e o sorriso permanecia, estóico, ofuscando a decepção que não posso deixar de acreditar que a consumia pelo interior. Disfarçava bem, ou a plasticidade do sorriso estava tão entranhada que, aposto, o sorriso seria o mesmo na improvável hipótese de sair vitoriosa. Continuava intacta aquela simpatia para arrebatar as emoções dos que acham que a política é mais imagem que ideias. Tinha sido tão bem treinada que nem à hora da derrota o chip se sintonizou para a frequência da desilusão.

Também podia acontecer que ela e os excitados apoiantes estivessem contentes com a derrota. Na engenharia eleitoral, há especialistas em transformar derrotas em vitórias. Ao bom estilo das vitórias morais que enchem as vitrinas do futebol nacional. Gosto particularmente da retórica do “perdemos, mas saímos de cabeça erguida”. Ontem, pela sede de campanha dos socialistas franceses, à hora em que a candidata assumia placidamente a derrota, apaniguados exultavam e urravam não sei bem porquê. Talvez ninguém lhes tivesse explicado que nestas eleições o segundo classificado é o grande perdedor, porque não há ninguém que fique atrás dele.

Porventura o enamoramento entre Ségolène e os seus dedicados apoiantes continuava. O idílio que anestesiou tanta gente continuava ao rubro, pois a senhora irradiava felicidade na hora da derrota. As suas palavras soltavam-se, misturadas com aquela simpatia contagiante que se pensava ser suficiente para mascarar a vacuidade da candidata. Ela tecia-se nas suas palavras, radiante, e os apoiantes gritavam um entusiasmo que é conhecido aos vitoriosos. Dirão alguns, mas condescendentes: aquilo era prova de um fair play que distingue a esquerda da direita. Até na derrota – continuarão esses tontos – Ségolène manteve a postura e encarou a derrota com normalidade, sem dramatismo. Lamentavelmente, alguns prosélitos socialistas (e outras excrescências situadas à extrema-esquerda) não deram prova dos mesmos bons fígados. Em algumas cidades perturbaram as comemorações dos que tinham algo para festejar. Eis como a imagem de plasticina, uma vez esboroada, deixa tudo à mostra: pode o sorriso fabricado da candidata disfarçar a decepção da derrota; podem os apoiantes que assistiam ao seu discurso mostrar um aparente fair play; que tudo se denuncia na rua, com os energúmenos que não aceitaram a derrota e ofenderam os que tinham o direito de celebrar a vitória. Assim se vê a cultura democrática dos socialistas.

Por mim, confesso o prazer malévolo em assistir da plateia a derrotas de socialistas que se passeiam com a sua superioridade inevitável. Como li em alguns vultos culturais da nossa praça que afirmam a sua pertença esquerdista, Ségolène “tinha que ganhar”. Era a vitória, ou a vitória. É perante esta pesporrência que me encho de contentamento quando os vejo a carpir as lágrimas da derrota. O mal é meu, do mau feitio que não me larga. É isso e uma das grandes frustrações da minha vida: por mais que me esforce, não consigo ser socialista.

Sem comentários: