30.8.07

Da música intemporal

Há um beco sem saída quando rejeito olhar por trás do ombro, aquilatando a saudade do passado, e apetece escutar música de antanho. O paradoxo surge em toda a sua latência porque os sons resguardados da poeira do tempo trazem recordações desse tempo, agradáveis ou amargas. Ainda que não seja a intenção, ouvir a música que foi referência há mais de quinze anos é um mergulho nas raízes do ser. Não digo que haja lugar a renegar o passado que foi vivido. Ele está emoldurado, e só pérfidas manobras estalinistas de apagamento do passado é que poderiam contrariar o iniludível.

Isto a propósito da convicção enraizada de que a música é intemporal. Será, quando a música é um produto, um legado do artista, sem ancoragens individuais que a perfumam com lugares, pessoas, factos que adicionam a essa música em particular significados que ultrapassam a vontade do criador. É nessa altura que a música se aproxima tanto de uma tela, da subjectividade que se abre à sua interpretação. Dos variados significados que contempla, abrindo múltiplas janelas de par em par. Só que nesse momento, quando a música bebe a sua influência intersubjectiva, perde o rasto da intemporalidade. Fica agarrada a uma marca do tempo. Os assomos de subjectividade, conforme as representações que a música traz para cada pessoa, são o cimento de uma datação inultrapassável.

E, no entanto, os paradoxos continuam a surgir de frente, sem saber o que fazer para me desembaraçar deles. Em deambulações sonoras, retomei uma música de que escassamente me lembrava: “Red Sun”, dos Thin White Rope. Localizo-a no tempo: 1990; e procuro um referencial: o penúltimo ano da licenciatura. Os saudosos tempos do programa “Som da frente”, na Rádio Comercial, noite dentro (entre a uma e as três). Uma sede enorme de beber as novidades do circuito musical alternativo, que António Sérgio divulgava.

(Sinal dos tempos, António Sérgio é hoje a voz off da SIC, anunciando os dramas, paixonetas e traições de mais uma telenovela brasileira. Não sei se é crença minha, ou apenas recusa em admitir a realidade pungente, mas sempre que o ouço nestes anúncios que intervalam um filme noto uma ponta de doce ironia na voz poderosa de António Sérgio. Que decerto as senhoras ávidas pelo produto não chegam a perceber.)

Revisito a música dos Thin White Rope. Num esforço simultâneo por reprimir as divagações do passado que tentam irromper a cada acorde. É uma tentativa para habilitar a ideia de que a música é intemporal, objectiva, desprendida das paisagens individuais dos ouvidos que a escutam. Concentro-me na guitarra poderosa, no som rouco que cavalga quase dois minutos num exercício instrumental que anuncia a voz que a todo o momento há-de chegar. Tento reter as palavras entoadas pela voz cavernosa, que depois se cala para ceder lugar ao protagonismo da guitarra escorreita que cilindra a paisagem sonora. E se me recuso a caucionar a ideia de que a música de agora se banalizou, falha de criatividade, pleiteando pela tese de que na década de noventa do século passado é que fervilhava a verve musical, ouço esta música e sou tomado não pela nostalgia desses tempos, mas pela noção de que havia grandes músicas que agora soam ainda mais monumentais.

E para que não haja sensação de saudosismo inconsequente, como se os tempos que correm não fossem também eles fervilhantes em projectos musicais que exalam criatividade, o mergulho na música intemporal deixa surpresas de sinal contrário. Quantas vezes, a revisitação de certas músicas que foram excitantes no seu tempo semeia a perplexidade, deixando a pergunta “como foi possível gostar disto”? Outra vez a subjectividade em todo o seu esplendor. A negação da intemporalidade subjectiva. Músicas que outrora habitaram no altar das preferências e que agora não passariam pelo crivo. Umas vezes pela sonoridade que agride, dando conta do sentido auditivo que evoluiu com o tempo, gostos pessoais revelando diferentes sensibilidades que entronizam novos sons e renegam sons que no passado serviam como matéria-prima de deleites.

Na mesma deambulação que me levou ao encontro de Thin White Rope, cheguei a “Good morning beautiful”, um tema dos The The, já na fase descendente. Umas estrofes desfiguram a música: “I know that God lives in everybody souls/and the only devil in your world lives in the human heart”. E sei que na altura havia identificação com a rebeldia das ideias que era sinónimo de identificação com uma juventude inquietada. Hoje, aquelas palavras soam a vacuidade, a um pregão tonto que me faz lembrar, e muito, o beato revolucionário que lidera o Bloco de Esquerda. Das palavras que fazem barulho, estridentes, mas que dizem nada.

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