De José Cid, expoente da “música ligeira” nacional. Quando se pensava que Cid tinha passado para a fase dos cromos arquivados no relambório de artistas que não deixam rasto. Uma vaga de fundo, saudosista, trouxe de volta Cid para as rádios, televisões, entrevistas em jornais (onde passeia a sua imodéstia) e palcos de concertos de uma ponta à outra da geografia caseira.
Cresci com influências que viam em José Cid mau gosto musical. Concedo, o que somos faz-se muito das influências que recebemos. Quando alguém diz que não simpatiza com a “obra” musical de um artista, o seu conhecimento da dita “obra” não vai além de uns acordes esparsos. Só não sei se será suficiente para garantir que não gosto do fulano enquanto artista do panorama de variedades. Só que é impensável o desdobramento em várias pessoas para ter a pretensão de conhecer o vasto universo de obras musicais (e quem fala de música, fala de literatura, cinema, ou artes plásticas) que vegeta no mercado. Chega uma amostra para proferir um juízo. E o que acontece é essa amostra ser diagnóstico bastante para remeter alguns artistas para a sepultura do inaudível. É um diagnóstico desapiedado para o autor. Depois há aquele lado societário, em que engrossamos modas sem sabermos porque o fazemos, a não ser por certos “ícones” que temos por gurus de uma arte qualquer sancionarem, do alto da sua batuta, o que convém ouvir e o que é dispensável.
A antipatia pessoal pelo repositório de José Cid filia-se mais nas análises de outros do que numa análise pessoal. Conheço pouco da sua obra, agora recuperada para gáudio de uma geração que parece saudosa dos tempos em que vogava na pós-adolescência e se deliciava com as produções musicais de Cid. O pouco, muito pouco, que conheço chegou para cimentar a opinião. A Cid não faltaria muito terreno para se elevar ao púlpito dos “artistas pimba”.
Para desajudar, Cid tem um desempenho pessoal irritante. Pode ser destemido, até possuir um dom que aprecio – a frontalidade, sem receio de incomodar as convenções do aceitável, fiel aos princípios que o regem. Hoje há poucos assim. Só não sei se esta frontalidade, que às vezes raia o desassombro, é produto de ressentimentos acumulados pelo não reconhecimento público de que se achava credor. Descontando estes aspectos, implico com a prosápia que Cid discorre nas entrevistas em que se tem desdobrado. Mas, afinal, não há por aí tanto artista consagrado que é um crápula no plano pessoal?
Não vou discutir os méritos musicais de José Cid. Leigo em música, não estou preparado para o fazer. No que me interessa – ter uma bitola para avaliar o que faz parte das minhas preferências musicais – Cid continua a não ser credor de atenção. Mas há uma vaga de fundo, poderosa, que trouxe Cid do anonimato a que estava remetido para os píncaros das audiências. É a força tremenda que os movimentos têm, quando se irmanam por uma causa. E quando conseguem manobrar os cordelinhos no teatro do mediatismo para emproar com uma refulgência inusitada acontecimentos da sua preferência. Há uns meses, quando o artista presenteou os admiradores com um concerto anunciado com pompa e circunstância (no Maxime, se não estou em erro), saíram reportagens em jornais de referência. Com alusão abundante a notáveis da nossa praça que quiserem dar a cara como admiradores do artista. Lá estavam vários notáveis contemporâneos de Cid. Um exercício de nostalgia colectiva, a de uma geração que apeteceu mergulhar nos confins do passado para resgatar alguma da juventude de que restam uns isolados fragmentos?
Deu-se o efeito correia de transmissão. Aquelas personalidades foram o tónico contagiante, propagando a ressuscitação de Cid a amplas camadas da audiência. Entre o passa a palavra da imprensa desponta um José Cid ressuscitado. Um artista que estava proscrito dos píncaros da estética musical e que agora volta a estar na moda. Resta saber se é um modismo efémero, até a que a elite sexagenária (e pré-sexagenária) que o tirou do empoeirado sarcófago se canse da viagem no tempo e regresse às referências musicais de cada um, onde voltam a divergir. Já não enquanto tribo que se agarrou a José Cid como a tábua de salvação para a viagem no tempo que resgatou os sedimentos longínquos da juventude palpitante de antanho. Terá sido o último fôlego para um artista surpreendentemente ressuscitado.
1 comentário:
Caro PVM
Como deixou bem claro, você não conhece mesmo a obra de José Cid, ficando-se apenas por uma pré-concebida rotulação de "pimba". Assim, sou obrigada a exemplificar alguma da sua obra, que tanto incomodou colegas do José Cid e não só. Passo a enumerar algumas porque não quero tomar muito do seu tempo:
1- o álbum "10.000 Anos Depois Entre Vênus e Marte" foi considerado pela revista Qboard como o nº 58 dos melhores álbuns de rock progressivo do século XX. Feito único, até aos dias de hoje, visto que mais nenhum Artista Português pode se orgulhar disso;
2- tem mais de 28 temas proíbidos pelo regime de Salazar. Mais que o Zeca Afonso;
3- na década de 80 lançou um vinil de fado que vendeu mais de 400.000 cópias, record de todos os vinis da décade de 80 por um artista português;
4- conhece o álbum "cais do sodré"? Jazz
5- Quando das comemorações do Centenário de Garcia Lorca, José Cid publicou um álbum na vizinha Espanha (nós por cá ninguém se interessou) apenas com temas de Lorca. edição esgotadíssima;
6- em 1977 ganhou o Festival do Budokan em tóquio à frente de grandes nomes, tais como àgua Viva (Espanha) e Elton John;
poderia continuar por mais 100 pontos ou talvez mais, mas não o quero massacrar.
quanto à irreverência tem um grande atributo: irreverente e coerente.
E lhe garanto que é o mais amigo dos seus colegas que os colegas com os colegas. Pergunte ao André Sardet...
Abraços
Sudações musicais
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