23.8.07

Generosidade, da genuína


Os administradores do Hospital de Matosinhos abdicaram dos automóveis de serviço e canalizaram a verba para aquisição de material de tecnologia de ponta para neurocirurgia. 175.000 euros deixaram de estar ao serviço dos gestores, sendo usados em benefício da comunidade. Quando escutei a notícia fui sobressaltado por uma intermitência no pessimismo antropológico que me domina. Afinal há generosidade, daquela que é genuína, sem segundos sentidos ou sem estar associada a outros fins não confessados.

Um dos administradores foi entrevistado. Ele e os colegas da administração do hospital deram conta da impossibilidade de adquirir o tal equipamento que era importante para a unidade de neurocirurgia. Avaliaram custos e tentaram perceber se havia alternativas para obter os fundos necessários. E, disse mais, como todos eles tinham automóveis próprios, que estavam habituados a conduzir antes de terem sido nomeados para a administração do hospital, podiam dispensar a benesse que o orçamento de Estado generosamente punha à sua disposição. Em vez de estacionarem os seus automóveis na garagem, fazendo-se deslocar em carros do Estado, tudo continuou como dantes. O dinheiro que teria sido gasto em carrões teve destino mais útil.

Não retive o nome do administrador. Não era decerto figura com aspirações políticas, como tantos há que se encavalitam na administração de hospitais como etapa intermédia da ascensão na carreira política. Não consta que aquele senhor frequente sedes partidárias. Isto serve para enquadrar o acto de generosidade. Não era um gestor público profissional, daqueles que militam em partidos do centrão ou que gravitam nas suas adjacências. Um acto demonstrando semelhante nobreza de carácter não é compatível com a categoria de gestor público profissional, que vai rodando de empresa pública para serviço público, normalmente com resultados financeiros catastróficos. Não digo que a utilização do automóvel de serviço, prevista por lei, fosse um acto de indignidade. Seria o usufruto de um direito, sem que houvesse lugar a acusações aos gestores que assim procedessem. No fundo, é um direito que representa uma parcela da retribuição pelos serviços prestados pelos gestores públicos. O que se pode questionar é a farta generosidade da lei que distribuiu essas regalias.

Tudo isto serve para enaltecer ainda mais o acto dos administradores do hospital de Matosinhos. Cada gestor abdicou da sua parte no bolo automóvel que o tão generoso Estado lhes oferecia. De acordo com a notícia, seriam 175.000 euros a dividir pelos cinco gestores. Cada um actuou como benemérito em 35.000 euros. Convém reter de novo a ideia essencial, para se perceber o alcance do acto de altruísmo: cada gestor teria direito a embolsar o equivalente a 35.000 euros, através da utilização do veículo de serviço, como parte da contrapartida devida por terem sido nomeados para aquele cargo.

A excepção merece aplauso. Quantos gestores públicos não terão ficado de orelhas a arder ao tomarem conhecimento do desprendimento material dos administradores do hospital de Matosinhos – é a pergunta a que gostaria de obter resposta. Adivinho: larga maioria terá manifestado incómodo, sabendo que o povo atento desejará escrutiná-los, interrogando-os se também não podem prescindir dos automóveis a que têm direito, oferecendo a verba a algo que seja útil ao serviço que comandam. Ou a larga maioria de gestores públicos terá feito de conta que não tomou conhecimento da notícia, varrendo a história para debaixo do tapete, para o sarcófago das irrelevâncias. Em privado, se apanharem a jeito os colegas do hospital de Matosinhos, hão-de encostá-los à parede. Sobre eles há-de pesar a acusação de falta de solidariedade corporativa: um gestor público é treinado para exaurir recursos ao erário público, jamais para exercitar altruísmo em favor do público anónimo.

Só levanto um porém nesta história: o ter sido noticiada. A generosidade faz-se sem buscar os holofotes do mediatismo, nem com o intuito de ser publicamente reconhecido. Quando um benfeitor se põe em bicos dos pés em demanda de reconhecimento – dos que são beneficiados pelo altruísmo e por todos os demais, sempre dispostos ao aplauso de quem ajuda o próximo – desconfio da genuinidade do altruísmo. No caso do hospital de Matosinhos, dou de barato a excepção à regra: no vasto oceano de maus exemplos entre gestores públicos, a oferta dos administradores é uma lança no marasmo, um exemplo.

Entre o negrume que empesta a espécie humana, ainda há uns luminosos raios que semeiam alguma esperança. Pena é que sejam pontuais excepções.

2 comentários:

ana v. disse...

Também postei sobre isto. Estranhamente, não foi muito falado. Talvez porque as pessoas desconfiem da veracidade destas notícias e tenham medo de que lhes chamem "tansos" depois. Por mim, que se lixe. Gosto de acreditar na humanidade e no carácter que ainda existe.
Percebo o que quer dizer no seu "porém", mas não vi os administradores exibirem o seu acto nem vangloriarem-se de nenhuma maneira. Foram entrevistados e disseram simplesmente o que tinham feito, sem grande alarde. E ainda bem que o fizeram, para abanar muitos que jamais fariam uma coisa assim. Talvez assim isto tenha algum efeito nas consciências. Se tiver numa que seja, já valeu a pena.

NRC disse...

Também tive dificuldade em encontrar mais referências a uma notícia, que devia servir de exemplo e chamada de atenção para todos na Adm. Pub. deste país... e o mais que consegui descolar em pouco tempo foi o nome do presi­dente do Conselho de Administração, dr. Nuno Morujão, que lançou a proposta aos cinco adminis­tra­dores prescindiram das regalias... (Matosinhos Online)
Mais referências, aparentemente só na Blogosfera.
Cumps.