17.8.07

Missa na areia


Um dia destes houve um dignitário eclesiástico que ousou inovar. Celebrou a eucaristia dominical em plena praia. O bispo de Aveiro mostrou ao mundo que a igreja não é uma entidade tão ultrapassada como consta. O bispo, puxando lustro ao ecumenismo de alguns, invocou o nome de Maomé: e se ele não vem à montanha, que se desloque a montanha até aos pés de Maomé, aos pés desnudados que se refrescam nas frias águas atlânticas numa praia confinante com a ria de Aveiro.

A missa foi dada na areia. O sacerdote compreendeu que o povo tem que ser cativado das formas mais originais que só estão ao alcance dos gurus de marketing. Aliás, com esta cartada de mestre, o marketing teria muito a ganhar se as suas fileiras fossem engrossadas pelo bispo de Aveiro, não fosse dar-se o caso do bispo ter seguido a carreira eclesiástica. O povo resvala cada vez mais para os prazeres do corpo, para o hedonismo que contraria a monástica forma de viver ditada pela igreja. Ainda que continue a professar a religião católica, o povo não desperdiça um óptimo dia de praia – que eles escasseiam a norte, para mais quando o Verão deste ano teima no seu envergonhamento. Entre um dia bem passado na praia e a ida à missa dominical, o povo acredita que o bom deus perdoará a tentação de arrastar os corpos para a toalha estendida no areal.

Do alto do seu discernimento, o bispo não quis privar os crentes da obrigação que os leva à missa de domingo. Estando as praias mais convidativas que os bancos da igreja, o bispo pegou nas trouxas e acampou o altar em plena areia. Matou três coelhos com uma cajadada. Primeiro, exibiu um surpreendente refrescamento da bafienta entidade que não cessa de aspergir sobre crentes e não crentes sinais de passadismo doentio. Segundo, mostrou que a igreja pode estar ao serviço dos fiéis. Inverte-se o plano do relacionamento: por uma vez que seja, não são os fiéis que se ajoelham, na sua infinita pequenez, perante a grandiosidade da perene igreja. É a igreja convertida a um pregão do mercado, o que sentencia que o cliente tem sempre razão. Terceiro, a jogada do bispo foi de um estratega de primeira água: naquele domingo, a eucaristia teve uma audiência sem precedentes. Nunca tantos foram os espectadores da missa. Os voluntários e os involuntários. A “palavra do senhor” chegou até a quem não a queria escutar. A alternativa seria tamponar os ouvidos ou mudar de praia.

Eu até acho bem que a igreja abra as janelas e deixe entrar ar fresco para o quarto tão cheio de mofo. Que se modernize, vá até às pessoas, percebendo que o mundo evolui e arrasta as pessoas para alterações de mentalidades. Ainda que seja matéria estranha a um ateu, o ateu não pode deixar de aplaudir quando a entidade eclesiástica instrui os sacerdotes para uma visão mais arejada do mundo. A igreja tem de descer do mundo etéreo, equiparar-se aos mortais a que se dirige. Fazer a missa na praia pode ser o primeiro passo. Ainda que de outras paragens venham sinais anteriores da modernização da igreja: a famosa teologia da libertação cunhada em países latino-americanos, que faz a síntese de Cristo e Marx, aceitando que o “povo oprimido” se muna de armas para fazer a revolução.

Desinteressado, porque militantemente ateu, daqui ofereço os meus préstimos para a modernização da igreja católica. Para além de missas em locais improváveis, seriam dadas instruções aos mais jovens padres para palmilharem locais de devassidão humana, tentando convencer os ímpios que só a purificação da alma revela os frondosos caminhos do apaziguamento interior. A peregrinação seria complementada por missas à porta dos lupanares onde as hormonas tomam de assalto a dignidade do espírito. Assim como assim, os padres habituados às missas dominicais no meio da praia estariam treinados a ver corpos femininos apenas envergando minimalistas biquínis. Logo, preparados estariam para enfrentar as voluptuosas alternadeiras que são a tentação carnal que traz tantos clientes em pecado. Seriam os padres acusados de cercear o funcionamento de um mercado, o mercado onde a excitação das hormonas masculinas coisifica a mulher (tratada como “carne branca”); teriam, por esse motivo, o aplauso de outros frades que se coçam de alergia por tanto capitalismo que os cerca. Seria uma aliança insólita, sacerdotes católicos e frades da esquerda caviar em uníssono contra as excrescências do capitalismo.

Em matéria de compreensão da realidade, o tirocínio ideal para sacerdotes mais arejados seria frequentar o acampamento de Verão da esquerda caviar. Seria o começo de uma aliança idílica.

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