1.8.07

Das férias como instrumento da preguiça


Agosto, o pior dos meses para férias. Aos que não podem deixar de fazer férias em Agosto, pelas contingências do calendário profissional, que hipótese resta? Fazer férias em Agosto: quando há mais gente em férias, quando é tudo mais caro, quando os dias já são mais curtos (que o equinócio do Verão já foi dobrado há mais de um mês). Férias, ainda assim. E são sempre merecidas. Na véspera de descansar o corpo no período estival vem no ar a ideia de que o corpo chegou tão cansado quando a folha do calendário por fim anuncia as férias. Sempre merecidas.

Há muitas maneiras de passar férias. Mercado por excelência, a função submete-se à tremenda ditadura de todos os mercados: o dinheiro fala mais alto. As férias, há-as para todas as bolsas. Férias poupadinhas, férias remediadas, férias em casa porque o ministério das finanças pregou uma partida com o IRS, férias paradisíacas que levam o couro e o cabelo. E em estilos variáveis: férias à beira-mar, férias culturais, férias de visita a cidades históricas, férias cosmopolitas, na interiorização de civilizações apenas dos livros conhecidas, férias de adrenalina. As possibilidades materiais são a veia jugular das ambições estivais. Os sonhos constroem-se em torno de imagens idílicas, que correspondam ao estilo da nossa preferência. Enquanto as poupanças não chegarem para satisfazer a versão onírica das férias, a descida à terra exige moderação.

Como os traços do envelhecimento se começam a fazer notar, na chegada às férias sinto-me carente de preguiça. Nem museus, nem leituras (tirando os jornais, que nem em férias consigo libertar-me do jugo da imprensa – maldito vício), nem viagens à descoberta dos recantos que os há sempre inexplorados, mesmo na revisitação dos lugares familiares. O corpo pede preguiça. É o triunfo da indolência. Sem horas a jorrar do relógio, que fica em casa para não ceder à tentação de obedecer a horários que dobram a preguiça sagrada. Deixar o tempo passar, sem projectos para amanhã ou depois de amanhã, que não sejam os do dia do regresso em que as férias já começam a entrar na modorra cansativa e a casa chora pela nossa presença.

Preguiça é arrastar o corpo pelo areal matinal, demoradamente contemplar a água do mar que se esfumam na areia molhada e as pessoas que deslizam os corpos em passeios terapêuticos em linha paralela ao mar, reparar nas crianças que chapinham em poças fazendo castelos de areia molhada. Enquanto o sol sobe e traz o calor que aquece os corpos, na insaciável imersão onde o corpo se desfaz da quentura que o sol e o vento de leste espalharam pela praia. Deixar o tempo seguir a sua marcha sem reter a preocupação de vigiar o relógio, que nem o há. Deixar a praia quando o corpo o pedir, o corpo torrado pelo sol levitando o desconforto que perturba a preguiça. A estival preguiça não se compadece com sacrifícios corporais. Deixa de o ser, e entram as férias em negação, quando o corpo é arrastado para a antítese da preguiça.

Haverá anciãs personagens que censuram a opacidade destas ideias. Vazias, dirão, acenado com a cabeça em tom de reprovação. Que o autor se esquece das muitas pessoas a quem não é assistido o dom da preguiça, pelo impedimento das férias. Vidas de sacrifício que deviam ser respeitadas pelos privilegiados que se entregam às pérfidas delícias estivais. Lamento contrariá-los com a divagação pessoal. Apenas vivo a minha vida. Não consigo viver a vida dos outros, nem apascento as dores alheias. E se há leviandade na expressão indolente das férias pessoais, este é sempre um registo intimista, eivado de individualismo que, concedo, há-de ser manancial suficiente para arrastar com a acusação de egoísta. O mesmo egoísmo com que levo o meu trabalho ao longo do ano. Que cauciona o egoísmo das férias que o sacrifício pessoal – e o meu “contributo para a sociedade” – fazem por ser um dom merecido. As férias, entenda-se, não o egoísmo de as passar conforme bem entendo sem dores de consciência pelas carências alheias.

Esta é uma preguiça necessária. Como se os dias de temperança ociosa se retratassem pelo encher do balão, pelo lento encher do balão, para outro ano de trabalho que vem assim que estejam dobrados os dias de férias. Uma preguiça terapêutica. É que só pela seiva da preguiça há mercê de julgar os predicados do trabalho. Durante as férias, venho de um pólo ao outro, mergulhando o corpo na antítese do ser. O lento amanhecer, ou o plácido entardecer, as refeições que se alongam no tempo, defronte do relvado que se estende até à piscina, e o corpo que escorrega para um sono sorrateiro algures na tarde, quando ao entardecer a piscina convoca um banho que retempera o corpo da cálida aragem que tomou conta do dia. Eis a preguiça das férias em todo o esplendor. Há nesta preguiça estival a compensação do corpo que se entregou ao trabalho. Um prémio merecido. Traz um sabor inigualável à indolência que é a âncora das férias.

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