31.8.07
Não se brinca com a realeza espanhola (é favor entoar com um timbre jocoso)
O equivalente ao ministério público ajuizou, douto, que um cartoon parodiando as façanhas sexuais do pretendente ao trono e da sua consorte plebeia ofendeu a nação espanhola. Fixou um custo indemnizatório de 3.600 euros, o preço pelo topete.
O episódio encanta pelo humor ainda mais refinado que o do cartoonista da revista El Jueves. Só quem se leva muito a sério é que fica incomodado com um cartoon que só nas mentes mais pequeninas soa a ofensa. Mentes que cabem num escaninho, desvalidas, assombradas pelo pecado sempre de mão dada com o sexo. E então se for a parodiar o sexo que os futuros herdeiros da coroa espanhola praticam, mais lesivo dos bons costumes, exigindo-se a mão implacável da justiça. Se, pelo caminho, sobrar a coacção sobre a liberdade de expressão, uma irrelevância ao pé da intocável família real Bourbon.
O juiz espanhol, decerto carrancudo vinte e quatro horas por dia, e com um “sentido de Estado” aprumado, terá sentenciado: a liberdade de expressão tem limites, um dos quais é a impossibilidade de troçar dos símbolos nacionais. É o pressuposto que está errado. Os símbolos são coisas, não podem ser personificados. Que digam que a bandeira e o hino são símbolos que a “pátria” deve preservar, não contemplando ofensas dos destravados mentais que até com isso fazem pilhéria, ainda condescendo (não concordando com a ideia). Dizer-se que uma pessoa simboliza um país é abusivo. Para todas as pessoas convencidas que são simbolizadas pelo tal predestinado. E, há que convir, para o entronizado na condição de símbolo. Uma responsabilidade enorme para uma pessoa só. Nestes tempos de pós-modernidade, em que os padrões de igualdade se estendem até às anacrónicas monarquias, vendo-se gente das casas reais no melhor esforço para ter uma vida tão comum como a pessoa comum, é insólito insistir na ideia que um rei, ou alguém da casa real, é símbolo de um país.
A teimosia tem o seu preço. Uma indústria voyeur prospera, rondando todos os passos dados por membros das casas reais. Coitados, têm uma adolescência manietada. Não podem ir para os copos, ou, indo, estão confinados a um espartilho, meninos muito bem comportados senão um tablóide sensacionalista se apressará a contar, com a ponta de exagero que apimenta as vendas, as façanhas que seriam normalidade num adolescente anónimo. As namoradas são cirurgicamente controladas. E ainda que se comece a desvanecer o costume com laivos de Idade Média que obrigava a realeza europeia a casar entre si (numa relação que tinha algo de incestuoso), autorizando os pretendentes ao trono a petiscarem beldades plebeias, mesmo estas têm que passar pelo crivo apertado – da família real e da imprensa, que vasculham o passado da menina e sentenciam se ela é merecedora do aspirante a rei.
É nestas alturas que dou uma valor incomensurável ao anonimato. Quem não consegue tirar partido deste dom, como a realeza, submete-se a uma vida penosa, com os holofotes sempre voltados sobre si, todos os passos vigiados. Não acho que as regalias, as imensas regalias para as quais não consigo discernir justificação, compensam as provações que a realeza passa. Porque não têm privacidade e, prova-se agora, até a sua intimidade é vasculhada pelos profissionais do humor underground. O príncipe herdeiro oferece abundante matéria-prima para a verve jocosa dos humoristas ostracizados pelos meios oficiais. É um relambório de fantásticas capacidades. Duas licenciaturas com nota máxima, a academia militar onde se distinguiu entre os demais, a biografia oficial que mais se assemelha a uma hagiografia. Até os melhores esforços para cimentar o futuro da hispanidade monárquica deixam passar pela frincha o apatetado da operação cosmética. Ou o príncipe é um sobredotado (o que não condiz com a personalidade apagada), ou quem o avaliou ao longo da vida estava comprado pela necessidade de o classificar sempre com as notas mais elevadas. Não vejo grande diferença entre isto e aquelas “eleições” em ditaduras em que o ditador as ganha com 99,99% dos sufrágios.
Quanto ao resto, é normal que haja uma minoria que não se revê na santidade do herdeiro do trono, que duvida das suas capacidades esplendorosas, e se entretenha a fazer humor com a situação. É a realeza que, como diz o povo noutros casos, “se põe mesmo a jeito”. No cartoon, a expressão cai que nem uma luva. A princesa plebeia – tão adorada pelo povo – está de quatro, mesmo a jeito para a entrada triunfal do príncipe. Que, também aqui, terá dotes fantásticos, noutra exibição das suas qualidades sobre-humanas. A poeira haveria de assentar se a revista que publicou o cartoon não tivesse sido apressadamente apreendida. E se não houvesse um diligente juiz que viesse recuperar o assunto, com a inculpação da revista e a condenação do humor.
É perante estes próceres, que agrilhoam a liberdade de expressão quando ela fere a dignidade da realeza, que mais apetece troçar da realeza. Sem o perceberem, são eles que alimentam um prolífico humor que vulgariza a realeza.
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