15.4.08

E estes capitalistas comunistas?


Ponto de ordem: sou entusiasta das virtudes do capitalismo. Estaria entre o que se convencionou, por estes tempos de facilitismo dos rótulos, chamar “neoliberal” (não se desse o caso de não saber o que é o “neoliberalismo” e, pelos sinais enviados pelos seus ferozes críticos, não me rever nesse modelo). O meu liberalismo é de uma casta diferente, todavia. Repugnam-me tanto as intervenções do Estado na economia, como a mania do empresariado estender a mão ao Estado, numa valsa insidiosa com os poderes públicos.

Novo ponto de ordem: acho reprovável o oportunismo que muitos empresários exibem à primeira oportunidade. São os responsáveis pelo estigma do capitalismo selvagem, a grande tábua de salvação dos vestígios de marxismo que ainda vegetam. Um exemplo na ordem do dia: na espuma da muito antecipada pré-campanha eleitoral em que este governo já entrou, a guloseima para eleitor se deliciar – a descida de um ponto percentual no IVA. Encantados com a pose magnífica do primeiro-ministro, e muitos aderindo à realidade ilusória contada pelas palavras encantatórias do primeiro-ministro e seu séquito, acreditamos na bondade da medida. E nem percebemos que ela apenas beneficia as empresas. Pois alguém acredita que uma descida tão insignificante do IVA vá levar os empresários a diminuírem os preços, para gáudio dos consumidores? Não, decerto os empresários vão repercutir a descida do IVA nos seus lucros.

Alguém se lembra de outra fantástica medida – a descida do IVA de 21% para 5% nos ginásios, para incentivar as gentes a perderem adiposidades e a serem tão cultoras do físico como o timoneiro primeiro-ministro? Ao fim de algum tempo, percebeu-se que os ginásios (com algumas excepções) mantiveram os preços, desdobrando-se em justificações de retórica para apenas açambarcarem a seu favor a diferença percentual que resultou da descida do IVA. Eis um exemplo de “chico-espertismo” capitalista. E, dou a mão à palmatória, adepto militante do capitalismo, que este exemplo se reproduz com frequência, de pequenas a médias e a grandes empresas.

É a mania de ir como toda a sede ao pote, sem perceber que a imprudência esboroa o pote em cacos. Com um preço inevitável: sindicatos, partidos da extrema-esquerda, arautos da “alter-globalização” lavrando palavras de protesto contra a fobia do lucro e a insensibilidade dos capitalistas, desapiedadas almas, diabretes possuídos por um atroz egoísmo, que não hesitam em atropelar os direitos dos trabalhadores para se embriagarem em lucros. Aliás, na visão dantesca destes sectores tão amantes de fabulosas teorias da conspiração, os capitalistas são uma infernal maquinação para oprimir os trabalhadores. Será o seu desporto favorito. E, ao mesmo tempo, o fértil terreno onde estas atormentadas almas descobrem motivos para se emproarem na condição de justiceiros. E, contudo, diante de alguns excessos de capitalistas cegados pela sede do lucro, até entendo que estes justiceiros venham à praça pública.

Porém, é irreprimível a perplexidade quando dou conta do silêncio destes justiceiros perante as barbaridades cometidas por alguns comunistas entretanto seduzidos pelas delícias do vil metal. Assobiam para o alto e não admitem que alguns entre eles são tão pérfidos como os capitalistas contra os quais erguem a sua militância. Isto vem a propósito de um artigo de opinião de António Barreto no Público de anteontem, que reflectia nas revelações do livro de Américo Cardoso Botelho, “Holocausto em Angola – memórias de entre o cárcere e o cemitério”. Retenho uma passagem do livro que resulta de um fac simile de uma carta enviada por Rosa Coutinho ao líder do MPLA, Agostinho Neto, em plena guerra civil:

Após a última reunião secreta que tivemos com os camaradas do PCP, resolvemos aconselhar-vos a dar execução imediata à segunda fase do plano. Não dizia Fanon que o complexo de inferioridade só se vence matando o colonizador? Camarada Agostinho Neto, dá, por isso, instruções secretas aos militantes do MPLA para aterrorizarem por todos os meios os brancos, matando, pilhando e incendiando, a fim de provocar a sua debandada de Angola. Sede cruéis sobretudo com as crianças, as mulheres e os velhos para desanimar os mais corajosos. Tão arreigados estão à terra esses cães exploradores brancos que só o terror os fará fugir. A FNLA e a UNITA deixarão assim de contar com o apoio dos brancos, de seus capitais e da sua experiência militar. Desenraízem-nos de tal maneira que com a queda dos brancos se arruíne toda a estrutura capitalista e se possa instaurar a nova sociedade socialista ou pelo menos se dificulte a reconstrução daquela”.

Este Rosa Coutinho fez-se homem de negócios em Angola. Enriqueceu à custa das negociatas que conseguiu depois de ter, enquanto representante de Portugal no processo de descolonização, arrepiado o caminho à subida ao poder dos comunistas. Cumplicidades convenientes, com o selo da solidariedade ideológica. Depois dos massacres de que foi conivente, dos julgamentos sumários que terminavam em inapeláveis sentenças de morte diante de uma turba extasiada, do sofrimento de um povo incapaz de ter um nível de vida condigno. Não estou a sugerir que Rosa Coutinho não tenha direito ao seu enamoramento com as delícias do capitalismo – nem menos a insinuar que há aqui incoerência ideológica, que nesse domínio fala apenas a consciência de cada um, domínio impenetrável, portanto. Só me faz espécie o silêncio – o silêncio comprometedor – das esquerdas (e de certas direitas que se banqueteiam no festim dos negócios que é hoje Angola) perante estes facínoras.

Ah, só se afinal os capitalistas bons forem aqueles que apregoam “olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço”. Porventura, já nem são comunistas, nem capitalistas. Apenas oportunistas. E facínoras.

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