9.4.08

Vertigem


Medo das alturas. Prédios que trepam, íngremes, pelas alturas. Lá do alto, os arranha-céus desafiam a sanidade mental dos que se atrevem a espreitar o abismo. Os estudiosos dos fenómenos da mente hão-de ter explicações para a atracção mórbida quando, lá do alto, não conseguimos reprimir o olhar que se escapa para as profundezas, em direcção do solo tão distante. Há naquele instante uma súbita náusea, como se o corpo tendesse a desequilibrar-se e o centro de gravidade no solo fosse o íman que atrai o corpo desde as alturas do arranha-céus. Há pesadelos que terminam assim: quando não houve força para travar a queda no abismo, interrompida apenas quando o pesadelo é despertado pelo sobressalto.

Uma experiência curiosa há anos, no alto da torre panorâmica de Toronto. Quando o elevador finda a sua ascensão chega-se ao piso onde a torre alarga a sua baia numa protuberância panorâmica. Alberga um espaço que faz furor entre turistas. A certa altura, vê-se um ajuntamento de pessoas. Quando se consegue chegar à frente, percebe-se a razão do ajuntamento. As pessoas avançam, receosas, pé ante pé. Quando derrotam o medo, nota-se-lhes o ar triunfante. Afinal era tão fácil. Não havia motivo para as resistências iniciais que as impediam de dar os passos que faltavam para saírem com a coroa triunfante, como se fosse um feito só ao alcance de heróis (contudo, de pacotilha).

Lá no cimo da torre, há um lugar reservado às experiências mentais. Subitamente, o solo perde a sua opacidade. O chão é feito de uma vidraça que deixa a nu o abismo que separa as alturas do solo lá tão em baixo. O passo em frente, da segurança do chão de madeira para o envidraçado solo que deixa debaixo dos pés a sensação de queda no abismo, é um acto de coragem. Exige derrotar a resistência mental que tolhe os movimentos.

O passo em frente não é inseguro – os engenheiros terão sabido calcular a resistência dos materiais que acautela a segurança dos que afrontam o abismo. Só que há um travão mental que atemoriza os movimentos e abranda o passo. Que segue, muito relutante, deslocando com lentidão os pés desde o cómodo solo baço até ao solo transparente que dá a sensação de uma queda livre até ao chão letal. Há resistências mentais que são difíceis de derrotar. É certo que há doidivanas que ali chegam e, emproando-se na condição de heróis do momento, ensaiam um estridente pulo para cima do chão envidraçado, quase levando à síncope os receosos que tentam derrotar as resistências vindas dentro de si. Logo se percebe que esses corajosos são uma falácia. E que terão estado ali uns minutos antes, uns dias antes, noutra ocasião qualquer. Que não são virgens no falso salto no abismo.

Quando o medo é derrotado e a mente por fim compreende que o abismo debaixo dos pés tem a rede de segurança do chão envidraçado, sobra a inexplicável sensação: afinal um acto tão fácil e, contudo, o passo inicial tão difícil de dar. Como as coisas ao início tão difíceis se esbatem na sua própria facilidade. A mente, um labirinto que nos aprisiona tantas vezes a sensações que se esfumam numa ilusão. As vertigens são um engodo da mente atraiçoada pelos seus abismos propositados. Quando, no alto de um arranha-céus, ou nas alturas que chegam para alimentar as vertigens, o corpo se empresta a um estranho cambalear que o parece empurrar contra o vazio, a contradição das sensações que queremos evitar mas parecem irrecusáveis.

Nas vertigens, a atracção inata pelas contradições interiores. O desafio à coerência que ostentamos, sinal de um caminho sem desvios, nunca erros nas encruzilhadas que se semeiam. Pelas vertigens, uma indeclinável embriaguez que nos deixa gagos perante os alicerces da coerência apregoada. As vertigens desnudam as incongruências que contaminam o castelo que resguarda a coerência. Para além das alturas, há uma vertigem que teimo em recusar: a vertigem do poder, a ostentação faustosa do poder, com as solenidades que o engalanam, o complexo de farda dos que são incapazes de discernir autoridade de autoritarismo.

Esta vertigem pessoal consuma-se num efeito: o anarquismo militante esmerado com o correr do tempo.

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