Triste embevecimento. As ruelas da amargura acolhem o sentir pesado dos açoites que se abatem sobre a alma sensível. Uma das almas. Aquela que teima em subir à açoteia e oferecer o rosto a todos os ventos, as arestas pontiagudas que deviam calejar aquela alma contra os sobressaltos contínuos. E, contudo, aquela alma, a alma tão ingénua, teima em acordar na sua imensa bondade, como se todos os dias não fossem império do seu contrário.
Essa alma esbarra na sua incompreensão do mundo. E não aprende. São altas as quedas a cada vez que o desapontamento estala na boca, nutriente de um olhar tristonho que não a desencoraja para a militante bondade. É a alma que acomete contra as outras que vagueiam, rebeldes e suas inversas, na seiva que circula nas veias. A alma boa recusa munir-se das armas que a atraiçoam. Teima numa irrecusável inocência, que se mistura com uma incongruente incapacidade para aprender com as desilusões.
Por vezes, essas desilusões ostentam a melífica peregrinação dos outros. A alma caridosa punge-se por eles, incapaz de os julgar, incapaz de falsos moralismos que sejam juízo do comportamento alheio. Limita-se a observar, na sua incapacidade para compreender tais peregrinações malévolas. E a sofrer com os desvarios que afastam as outras almas do idílico lugar onde, fossem todas como ela, só haveria uma imensa bondade. Outras vezes, as decepções semeiam-se no seu interior, quando vingam as almas turbulentas que actuam como demónios que se insinuam na asfixia da alma branda. E esta, tão ingénua, não combate as malignas erupções impetuosas, aleatórias e sem morada certa, de nenhures.
É por isso que a alma tão bondosa tem calo de tantas vezes se estatelar do alto do seu mirante que revela os ares plúmbeos que a entristecem. De todas as vezes que se escaqueira ao chegar ao solo, regenera-se como se ali houvesse um acto divino em sua ajuda. Ela não se esgota, nem muito menos encomenda a sua alma interior, no doloroso impacto com o chão duro. E nem os cacos em que se desfaz chegam para não reavivar a matéria de que é feita. Volta ao promontório onde se oferece às contingências, preparada para ser empurrada ladeira abaixo. Diria que é para isso que ela existe. Um inesgotável arcaboiço que a presta aos embates, por mais estridentes que sejam, dos ventos agrestes que silvam na sua fúria.
A bondosa alma que se debate contra os diabretes que são as almas contrapostas é um vaso pleno, como se ali houvesse fértil húmus, uma densidade indescritível onde se tece a teia imune ao revés. Um vaso tão preenchido onde se renovam as forças que se colocam à mercê das almas contraditórias que planam vindas do nada. Aterram no terraço onde amesenda a alma bondosa, para nela pousarem e a carcomerem. Não se debate, a alma boa: caridosa até para a sua antítese, abre os braços e acolhe as maquinações que a querem diluir na sua inexistência. Para isso foi concebida, a alma bondosa. Ou nem haveria lugar ao entendimento dos sentimentos que lhe são contrários.
E ainda que não sejam exangues as suas forças, entristece-se. Ela também se cansa, em momentos em que lhe apetece entregar as chaves da bondade nas mãos de um deus que seja seu penhor. A toque de rebate pelos sinos que dobram a mentira, a infâmia, a hipocrisia, a crueldade gratuita. Ainda que tisnada pela sombria luz que embacia a sensatez dos mortais, não se demite: insiste, entre as teias que dobram a sua ingenuidade, em depurar o coalho na espuma dos dias que se sucedem num interminável cortejo das coisas e sentimentos e palavras e actos que a deixam melancólica.
A luta interior, entre as inversas almas, é a maior das guerras. Não são as guerras em que os homens, estupidamente, se guerreiam. Porque essas selam uma vitória anterior, uma vitória em cada um dos homens que se guerreiam, e onde foi derrotada a alma boa.
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