Os espelhos são a caução da ilusão do corpo. Será variável o tempo que demoramos à frente dos espelhos. Não é uma questão de narcisismo, que haverá decerto quem se deleite consigo mesmo à frente do espelho, numa contemplação de inigualável auto-amor. Mas haverá um único dia em que não nos olhemos ao espelho? À saída do banho matinal, ao fazer a barba, no singelo acto de lavar as mãos que desvia os olhos no irreprimível acto de fitar o espelho.
Julgamos conhecer o rosto, todos os seus poros, as rugas que se adensam com a espessura do tempo. Julgamos ter conhecimento perfeito do corpo que envergamos. Dos gestos, o património genético da personalidade que foi sendo feita. Julgamos conhecer a voz que escutamos de cada vez que ecoam palavras da boca. Tudo se atraiçoa nas imagens que vemos de nós mesmos. Imagens filmadas, ou retratadas em fotografias, a voz numa qualquer gravação. É nessa altura que o corpo desfila como um corpo estranho. A primeira reacção é a de conhecer todos em redor menos a nossa pessoa. Um estranho. Surgem as interrogações: aquele sou eu? Aquela é a minha voz? Aqueles são os meus gestos?
Os gestos desajeitados, os gestos que deviam ser mais discretos. O envelhecimento, que só essas imagens – filmadas ou fotografadas – desnuda. Altura para uma súbita cólera contra os espelhos, pois eles só expõem um simulacro do corpo que temos em nós. Os espelhos oferecem-se como um filtro que compõe a imagem que depois aparece sem ardis quando o corpo desfila em fotografias ou imagens. Uma sensação indizível: parece que as câmaras que retratam e filmam são uma ressonância do corpo diferente do revelado pelos espelhos mais familiares. Indizível, porque ao cabo das vezes que retratos ou filmes mostram o corpo sobra a estranha sensação de que somos um corpo diferente.
É esta a explicação para o desconforto com os filmes amadores e as fotografias onde aparece o corpo? Digo que as fotografias e os filmes rememoram o passado já enquitasdo. E que a nostalgia do tempo emoldurado é uma inutilidade, uma ilusão que distorce os sentidos, como se houvesse a arte mágica de trazer do passado o tempo que não se repete. Digo que as fotografias são um refúgio absurdo nas memórias. Só não sei se não é pretexto para não olhar para o corpo, pelo incómodo na confrontação com o corpo que parece o corpo mais estranho de todos os que dão cor às imagens.
A exaltação da estranheza acontece com a voz. Terão sido poucas as vezes que ouvi a voz sem estar a falar. Uma sensação invulgar. Contraria a impressão auditiva da voz, tão habituado a todos os dias proferir as palavras que saem com a entoação da voz que julgo ser a minha. Só que a voz que ouço não a faço coincidir com as palavras entoadas por mim. Esta insólita sensação tive-a nas poucas vezes que escutei as minhas palavras sem ver imagens do rosto, da boca a entoá-las. A sensação imediata, a de não me reconhecer naquela voz. O prolongamento do corpo estranho que sinto nas imagens filmadas ou fotografadas.
Seremos estranhos de nós mesmos? Concedo: importa mais sermos íntimos com a nossa intimidade, capazes de discernir os traços de personalidade que se sedimentaram com o tempo. O corpo e as suas manifestações exteriores são isso apenas, uma imagem que se esgota na sua fina camada. Os tempos modernos são cultores da imagem exteriorizada, na desvalorização da espessura dos elementos intangíveis que são a essência de cada um. Ainda assim, o corpo é o que nos move. Quem se sente confortável num corpo pesado, quem se compraz com um corpo que seja a negação dos seus padrões estéticos? E quando a refracção das imagens do corpo mostra um corpo desconhecido, uma voz que é diferente da que escutamos de cada vez que da boca se soltam palavras, sobra a sensação de que somos um corpo diferente daquele que julgamos envergar.
A perplexidade ao sentir que um estranho habita dentro de nós. A alturas tantas, até parece que conhecemos melhor os que nos são próximos do que nós mesmos. A câmara de espelhos que é a visão desdobra-se para o exterior de nós mesmos, captura o que os outros são. É incapaz de o fazer com o corpo que é o nosso. Só o faz com a ajuda dos espelhos que, na confrontação com os retratos ou filmes, deixam à mostra um encadeamento de ilusórias imagens. Para perceber então que o corpo nos é estranho.
1 comentário:
Adoro esse texto. Parabéns!
Enviar um comentário