25.4.08

E o que é a liberdade?


Liberdade é quando eu posso fazer o que quero”, criança anónima, num infantário no Porto.

O cartaz afixado à entrada do infantário reproduzia as respostas das crianças quando lhes foi perguntado: “o que é a liberdade?”. Descontando as respostas que prenunciam os adultos de amanhã - os lugares comuns a que estamos habituados quando a correcção da moda impõe os seus parâmetros - e descontando uma resposta que rompia com a normalidade fixada (“liberdade é quando sou expulso”!), foi aquela resposta que ficou na retina.

Na sua inocência, a criança não entendeu que há uma diferença abissal entre o que formulamos no terreno idílico dos desejos e o que se torna possível. Há-de provar o amargo sabor da liberdade possível, de uma liberdade que se mascara de si mesma. Há-de crescer, perder a ingenuidade e, ao crescer, serão numerosas as oportunidades para perceber que a liberdade é uma outra coisa qualquer. Não o que ela agora julga ser. Terá muitas decepções enquanto aflorarem os vestígios desta ingenuidade desarmante. A menos que cresça depressa, à medida que for suportando as dores trazidas pela desilusão da liberdade condicionada, da liberdade travestida, da liberdade em distorção de si mesma. Será juiz supremo das gerações anteriores que destruíram a sua tão elevada ilusão de liberdade. Sentá-las-á no banco dos réus, acusadas da perversão dos padrões, da liberdade enfim pervertida - aquela que desfila diante dos seus olhos, a decepcionante liberdade que tolhe os movimentos.

Haverá quem discorde da candura da criança que postulou liberdade daquela maneira. Dirão que nunca a liberdade pode ter a latitude formulada pela criança. Que só o desconhecimento do mundo, e da vida, acalenta tanta ingenuidade. Uma liberdade assim é uma liberdade impossível. Porque seria um labirinto de liberdades sobrepostas, um emaranhado de conflitos, as liberdades de muitos atropelando-se nas liberdades de outros tantos na expressão de interesses de sinal contrário. Contraponho, em defesa da criança: a liberdade vem precedida da responsabilidade. É seu pressuposto. Aos que estranharem a extensa liberdade definida pela criança, porventura o sinal dos tempos: a exaltação de uma liberdade que se fica pela metade, uma embriaguez de direitos deixando os deveres sempre endossados a outrem. A pesada factura da responsabilidade, que os costumes instituídos convidam a abdicar.

A interiorização da responsabilidade individual revela o sentido da liberdade redescoberta pela criança. De cada vez que somos estorvos à responsabilidade que nos cabe, à responsabilidade pelos actos que cometemos, pisamos o alarme da liberdade. Somos fautores da enviesada liberdade. E entregamo-nos numa imprudente avenida: os que exercem o poder ficam com um pretexto para cercear liberdades individuais, no paradoxal objectivo de preservar as liberdades de todos. A retórica compensa, a julgar pela adesão das pessoas ao jogo eleitoral que sanciona a mão pesada das autoridades que não hesitam em esmagar as liberdades individuais com o pretexto de salvar a liberdade de todos. Uma espada que corta a eito, esboroando a teia de liberdades que os antepassados foram deixando como património genético de uma cidadania de emancipação.

Cedemos à vontade dos sacerdotes das liberdades reprimidas. Porventura, essa é uma ingenuidade maior que a ingenuidade de que viria acusada a criança que postulou a liberdade como o acto de fazer o que quiser fazer, quando quiser fazer, sem peias que não sejam as ditadas pela sua consciência. A cedência em nome de uma miragem: ao prescindirmos de um quinhão da liberdade individual, convencidos que as liberdades de todos se saldam reforçadas, nem damos conta que é na esfera individual que as liberdades se sentem. E não damos conta que uma liberdade condicionada é a sua negação.

Diante das fétidas liberdades que nos são agraciadas - como se as liberdades não fossem inatas à pessoa - rejubilei ao ler aquela frase no cartaz alusivo à data que hoje se celebra. Não é a liberdade torcionária de uns, ou a liberdade com muitas redes e espelhos de outros. Apetecia obrigar os fautores do comportamento desviante das liberdades a uma visita forçada ao infantário, só para se deterem, por alguns minutos, diante do cartaz onde estava vertida, a letras que soam a ouro, a genuína definição de liberdade. Podia ser que aprendessem.

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