16.4.08

A tese do “povo burro” é um pau de dois bicos


Pior que os americanos elegerem George W. Bush duas vezes, só os italianos entregarem pela terceira vez o Governo a Berlusconi!...”, Vital Moreira, no blogue Causa Nossa

Maus fígados, ou mau perder que revela uma espessura pouco democrática? Como se pode afiançar que um povo subitamente se deixou tomar por uma cegueira que o levou a escolher quem não “devia” escolher? Quando tecemos juízos tão assertivos sobre as escolhas eleitorais dos outros povos, a ingerência eleitoral pode ter um imponderável: mais tarde, os outros podem tecer o mesmo tipo de comentários acerca das escolhas ditadas pelas nossas eleições. E não gostamos, decerto, da intrusão.

O povo italiano terá embrutecido (pela terceira vez) porque não teve a sensatez de escolher Veltroni. Eu fico admirado com a elevada capacidade de um cérebro só se sobrepor à escolha de dezenas de milhões de eleitores. Há quem não aprenda nada com o passado. Incapazes de se convencerem de um dos predicados da democracia que tanto apregoam: afinal o igualitarismo não passa de retórica quando o mau perder eleitoral vem ao de cima. As coisas deviam ser desta forma: haveria resultados eleitorais admissíveis, onde a legitimidade da escolha seria sancionada pelos sumos-sacerdotes que estariam, lá do alto do seu pedestal, a certificar a escolha. E haveria os resultados eleitorais impensáveis, que não passariam na apertada malha dos sacerdotes.

Suponho que, nesta hipótese, os escrutinadores da aceitabilidade das eleições gostariam de ditar a repetição do sufrágio. Porventura até que os resultados fossem em consonância com os seus gostos pessoais. É curioso, isto faz-me lembrar um episódio recente, a recusa de Mugabe em aceitar os resultados das eleições que, segundo consta, teriam tirado o malfeitor do poder. Podia-se congeminar uma solução alternativa, para impedir o incómodo dos resultados eleitorais que pressagiam um povo ignaro: tal como vinga a moda que prescinde do sigilo bancário quando há dúvidas acerca da situação fiscal de uma pessoa, por que não terminar com o secretismo do voto? Talvez instituir um centralizado Big Brother informático, com a garantia – a falsa garantia – de que seria uma máquina a vigiar a forma como cada pessoa vota. Os que contribuíssem para uma escolha eleitoral menos apropriada (eufemismo para eleitores burros) seriam penalizados no seu direito de voto futuro. Teríamos então uma brecha no sagrado princípio do voto uninominal. Os meios justificariam os fins.

Haveria eleitores qualificados e os desqualificados. Meio caminho andado para os Veltronis, os Zapateros, os Sócrates, as Clinton, toda a seita da Internacional Socialista se perpetuar no poder. Às malvas a tolerância que julgamos ser património genético da democracia. E às malvas a alternância democrática, que também julgamos fazer parte do jogo. Se o povo exibe ignorância, compete aos iluminados indicarem o caminho certo. E se por acaso o povo teimar em ostentar a sua burrice, insensível aos apelos das mentes iluminadas em campanhas eleitorais, aparições televisivas cirurgicamente preparadas para que o sistema não sofra desvios, ou artigos de opinião em jornais de referência, o que fazer? Plano B: qualificar os eleitores consoante a orientação do seu voto?

Já em 2000, quando a ominosa extrema-direita de Jörg Haider chegou ao poder em coligação com o partido liberal de Schüssel, esteve quase para cair o Carmo e a Trindade. Muitas virgens ofendidas, sobretudo na sempre atenta Internacional Socialista, ao que parece auto convencida dos seus superiores parâmetros morais. A Áustria esteve sob o ponto de mira da União Europeia, vigilante para que não houvesse desvios à democracia. Na altura, a Internacional Socialista sentenciou o mau gosto dos eleitores austríacos (certamente daquela maioria que permitiu à coligação herética chegar ao poder). Agora há quem tenha o despudor de ajuizar as escolhas livres feitas pelos eleitores italianos. O que me incomoda é como podemos julgar as escolhas dos outros quando elas não afinam pelo nosso diapasão pessoal? Não corremos o risco dos outros fazerem o mesmo com as nossas preferências? E ficamos confortáveis ao saber que os outros decidiram ajuizar as nossas escolhas? Nessa altura, não exibimos a nossa indignação? Logo, não é legítimo que os tais eleitores supostamente ignorantes se sintam lesados pelo juízo tão iluminado, e protestem?

Acho Berlusconi detestável. Seria incapaz de votar no seu partido. Só que ao dar de caras com estes juízos tão assertivos, tenho uma pulsão para ser italiano e para ter sido votante de Berlusconi.

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