Por conveniência (deste texto), vou por um momento acreditar nessa coisa dos karmas. Há quem nasça com o rabo virado para o lado errado da lua. São os eternos patinhos feios. Ninguém – ou muito poucos, e pouco sonantes no mercado das palavras que ecoam no palco público – gosta deles. E ainda que vejam que são pouco amados, que há um enorme exército de críticos que já nem sequer critica e se limita a escarnecer, teimam em pôr a cabeça à superfície. Teimam em chamar protagonismo a si. Têm um espelho lá em casa, um espelho adulterado, ou amestrado, que lhes diz todos os dias ao acordar que sim, que estão entre o escol dos predestinados. E porfiam, querem ser personagens principais de um filme que não foi feito à sua medida.
As circunstâncias da vida por vezes conjugam-se de tal forma que são as terceiras, quartas, quintas e por aí fora escolhas que sobem ao palco para receber os aplausos pouco entusiasmados dos confrades que caucionam a escolha. Os meus amigos que são do PSD nunca mo confessaram, mas eu pressentia no seu silêncio que a arrebatadora eleição de Menezes para líder do seu partido era um acto de depuração. Talvez se acreditasse que tinham batido no fundo com Santana Lopes, esse erro de casting que só o próprio teima em não o admitir. Só que nisto da profundidade dos poços as conclusões só se tiram depois de feita uma prospecção. Não são as intuições que contam, antes as impressões reveladas pela experiência. Depois de um poço tão fundo, seguir-se-ia outro com o impressionante desempenho de conseguir sondar ainda mais abaixo.
Há quem diga que é do caos que renascem as instituições. Que é preciso destruir tudo para repensar, reordenar, burilar coordenadas, reerguer os alicerces. Uma renovação de cima a baixo. A tal diálise que refresca um sangue que estava carregado de veneno. É por isso que suspeito que os silêncios dos meus amigos do PSD eram tão reveladores: perante o diário chorrilho de disparates de Menezes, só um vendaval avassalador poderá ser a luz ao fim do túnel para este partido. Menezes foi esse furacão. Um furacão autofágico. São frescas as notícias acerca da sua demissão, estando ainda muito por descobrir. Menezes terá dito que não se candidata. Mas enviou sinais que esperar por uma “vaga de fundo”. Lá está: a obstinação da aura tão iluminada que alimenta uma luz esperançosa de que seja ele o salvador para resgatar o partido do féretro em que o colocou.
Serei cínico se confessar comiseração por Menezes? Contra mim perfila-se o gesto habitual de quem faz o elogio fúnebre onde as palavras contemplativas desvelam todos os predicados que só à hora do funeral são, por fim, enunciados. Menezes tem aquele ar de pessoa contristada sobre quem se descarregam todas as críticas, todas as chacotas. Aquele olhar de incompreendido, a face macilenta, o aspecto pungente que se põe a jeito da piedade alheia. Não sei se era pose estudada, considerando a atracção congénita de tanta gente para se pôr ao lado dos desvalidos que aparecem em público com ar contristado como se fossem pedintes mendigando a nossa piedade.
Talvez fosse esta intuição que punha Menezes a sentenciar que os opinadores encartados – uma horda militantemente crítica de si mesmo – não retratavam o “povo real”. E que o “povo real”, as pessoas comuns, as tais que têm coração de manteiga e que se apiedam dos desvalidos (como ele) lhe dariam a vitória nas eleições. Só que logo a seguir entregava-se nos braços de um tremendo paradoxo: o ar de coitadinho sugeria que o mundo acordava todos os dias contra Menezes. O mundo, incapaz de perceber os dotes de Menezes. O conspirativo mundo.
Pergunto-me: e mesmo Menezes acreditava, naqueles momentos de recolhimento consigo mesmo, na metafórica almofada celebrizada pelo seu antecessor, que havia probabilidades de ganhar as eleições legislativas do próximo ano? Na lógica cata-vento que o distinguiu nestes curtos mas intensos (de disparates) meses de liderança, quem o levava a sério? Eis a génese da minha comiseração por Menezes: de cada vez que aparecia a comentar, a criticar, a propor medidas, a abrir a boca que fosse, só se esperava por mais uma tolice. Era tão inata a propensão para a asneira, que mesmo que houvesse algum fundo de seriedade nas palavras que se soltavam da sua boca eram logo engavetadas na categoria da comédia.
Ontem terá sido o dia mais sombrio para o actual primeiro-ministro que nos calhou em fava. Com Menezes, ele nem precisava de mostrar serviço: Menezes arrepiava-lhe o caminho a nova vitória tranquila, como se fosse a segunda taluda que lhe saiu depois da sorte grande que foi ir a eleições contra Santana Lopes. E ainda que seja válida a ideia de que há sempre poços ainda mais fundos por explorar (por lá andam Mendes Bota, Marco António, o grandioso Ribau Esteves – só para citar alguns nomes que o seriam, poços mais fundos), aposto que o primeiro-ministro terá tido uma noite de insónias temendo que as eleições não vão ser as favas contadas que ele esperava, com a ajuda de Menezes.
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