Há idiossincrasias que são todo o roteiro da brutalidade de um povo. A sua animalesca forma de vida. Uma insensibilidade atroz. Serei nada indicado para o assunto, por causa da deriva vegetariana. Não vou por essa senda. Isto não é um panfleto contra a ingestão de carnes, nem sequer contra o que poderia ser entendido como um acto de ignomínia – comer infantis leitões, que se oferecem na sua inocência para uma vida efémera, ceifada tão cedo para amesendarem à frente de esbugalhados olhos de comensais que escorrem água na boca no pulsar irreprimível da gula. Mas, a cada uma a sua gula, o seu particular motivo de gula.
(E podia desmascarar uma incoerência pessoal: ontem almocei jaquinzinhos. São tão infantis como os leitões. Existência cerceada tão precocemente como aos leitões. Infanticídio servido à mesa na mesma. Revelação feita e incoerência desfraldada, fico por aqui que hoje não vim discutir as incoerências pessoais.)
O que incomoda é a arrogância antropocêntrica de enfeitar a cabeça do leitão com uma laranja espetada na boca. Lá vem o pequeno bicho, o seu corpo tenro inteiro saído do forno, a pele tostada como os apreciadores tanto gostam. A coroar a iguaria, duvidosa opção estética: a laranja como enfeite, metida à pressão dentro da boca do leitão já assado. Diria: um quadro grotesco. Qual é o papel da laranja? Um enfeite? Um adereço vistoso, só para emprestar mais cor à bandeja onde jaz o bacorinho estorricado?
Admite-se que o povo adora o quadro policromático. Foi ele que consagrou o adágio meio gastronómico, meio popular: “os olhos também comem”. Ainda que seja verdade que os sentidos se misturam, e que o paladar é espicaçado pelas sensações visuais agradáveis, não percebo – não consigo perceber – como pode o féretro assado levar o adicional tratamento do citrino enfiado na boca e o povo ficar seduzido com a performance dos vulgares cozinheiros. Claro, uma vez morto o animal perdeu a dignidade – se é que alguma vez, desde que uma putativa divindade lhe reservou o papel de apascentar a gula dos humanos, a ela teve direito. Também não é o momento certo para discutir antropocêntricos pressupostos.
Não sei se a laranja espetada na boca do leitão servido à mesa é sinal de duvidosa estética popular ou da animalesca educação que recebemos, o lastro civilizacional que coloca todos os animais como serventia dos prazeres e necessidades dos humanos. Um pouco de ambos os sintomas, talvez. Do primeiro, do desalinhamento estético, é só recordar o frenesim por estes dias de treinos da “equipa de todos nós” em preparação para o campeonato europeu de futebol. Há gestos que definem a têmpera de quem os patrocina: em dois dias, os bravos heróis tiveram direito à visita de dois ícones da música pimba, para gáudio do sertanejo treinador, tão embevecido com as visitas de ilustres artistas. E o povo, enternecido – com os heróis que tão depressa o deixarão de ser se começarem a coleccionar derrotas e com os ícones da música pimba, senhores de avantajados sucessos comerciais tão sintomáticos.
Lembro-me de tudo isto ao passar num talho perto de casa. De relance, saltou à vista uma fotografia de generosas dimensões a espelhar cá para fora: uma ternurenta fotografia de um leitão – ainda vivo – debruçado num varandim, como se estivesse a rir ao punhal que o há-de lacrar como iguaria. Parece que esboça um sorriso, na sua inocente ignorância do que o espera quando os carrascos que o tratam tiverem decidido que atingiu o ponto ideal para oferecer a barriga ao punhal que o virá esventrar. Ri-se, possivelmente contente com o destino que lhe está reservado. Saberá, decerto, que nasceu para em poucas semanas se despedir da vida e fazer as delícias de um insensível comensal que se há-de alambazar com o pitéu, passada a veneração prévia do ritual da laranja acomodada na boca do bácoro.
Tudo regado com aqueles vinhos xaroposos que o povo tanto gosta e, se possível – cereja no topo no bolo –, ao som de Tony Carreira e de Roberto Leal.