30.5.08

O leitão tem uma laranja na boca


Há idiossincrasias que são todo o roteiro da brutalidade de um povo. A sua animalesca forma de vida. Uma insensibilidade atroz. Serei nada indicado para o assunto, por causa da deriva vegetariana. Não vou por essa senda. Isto não é um panfleto contra a ingestão de carnes, nem sequer contra o que poderia ser entendido como um acto de ignomínia – comer infantis leitões, que se oferecem na sua inocência para uma vida efémera, ceifada tão cedo para amesendarem à frente de esbugalhados olhos de comensais que escorrem água na boca no pulsar irreprimível da gula. Mas, a cada uma a sua gula, o seu particular motivo de gula.

(E podia desmascarar uma incoerência pessoal: ontem almocei jaquinzinhos. São tão infantis como os leitões. Existência cerceada tão precocemente como aos leitões. Infanticídio servido à mesa na mesma. Revelação feita e incoerência desfraldada, fico por aqui que hoje não vim discutir as incoerências pessoais.)

O que incomoda é a arrogância antropocêntrica de enfeitar a cabeça do leitão com uma laranja espetada na boca. Lá vem o pequeno bicho, o seu corpo tenro inteiro saído do forno, a pele tostada como os apreciadores tanto gostam. A coroar a iguaria, duvidosa opção estética: a laranja como enfeite, metida à pressão dentro da boca do leitão já assado. Diria: um quadro grotesco. Qual é o papel da laranja? Um enfeite? Um adereço vistoso, só para emprestar mais cor à bandeja onde jaz o bacorinho estorricado?

Admite-se que o povo adora o quadro policromático. Foi ele que consagrou o adágio meio gastronómico, meio popular: “os olhos também comem”. Ainda que seja verdade que os sentidos se misturam, e que o paladar é espicaçado pelas sensações visuais agradáveis, não percebo – não consigo perceber – como pode o féretro assado levar o adicional tratamento do citrino enfiado na boca e o povo ficar seduzido com a performance dos vulgares cozinheiros. Claro, uma vez morto o animal perdeu a dignidade – se é que alguma vez, desde que uma putativa divindade lhe reservou o papel de apascentar a gula dos humanos, a ela teve direito. Também não é o momento certo para discutir antropocêntricos pressupostos.

Não sei se a laranja espetada na boca do leitão servido à mesa é sinal de duvidosa estética popular ou da animalesca educação que recebemos, o lastro civilizacional que coloca todos os animais como serventia dos prazeres e necessidades dos humanos. Um pouco de ambos os sintomas, talvez. Do primeiro, do desalinhamento estético, é só recordar o frenesim por estes dias de treinos da “equipa de todos nós” em preparação para o campeonato europeu de futebol. Há gestos que definem a têmpera de quem os patrocina: em dois dias, os bravos heróis tiveram direito à visita de dois ícones da música pimba, para gáudio do sertanejo treinador, tão embevecido com as visitas de ilustres artistas. E o povo, enternecido – com os heróis que tão depressa o deixarão de ser se começarem a coleccionar derrotas e com os ícones da música pimba, senhores de avantajados sucessos comerciais tão sintomáticos.

Lembro-me de tudo isto ao passar num talho perto de casa. De relance, saltou à vista uma fotografia de generosas dimensões a espelhar cá para fora: uma ternurenta fotografia de um leitão – ainda vivo – debruçado num varandim, como se estivesse a rir ao punhal que o há-de lacrar como iguaria. Parece que esboça um sorriso, na sua inocente ignorância do que o espera quando os carrascos que o tratam tiverem decidido que atingiu o ponto ideal para oferecer a barriga ao punhal que o virá esventrar. Ri-se, possivelmente contente com o destino que lhe está reservado. Saberá, decerto, que nasceu para em poucas semanas se despedir da vida e fazer as delícias de um insensível comensal que se há-de alambazar com o pitéu, passada a veneração prévia do ritual da laranja acomodada na boca do bácoro.

Tudo regado com aqueles vinhos xaroposos que o povo tanto gosta e, se possível – cereja no topo no bolo –, ao som de Tony Carreira e de Roberto Leal.

29.5.08

A angústia da morte, ou o pretexto para a bebedeira da vida


Os que vivem intensamente não têm medo de morrer”, Anaïs Nin.

A consumição do ateísmo é a sementeira para a perplexidade da morte. Um tremendo buraco negro no dobrar da vida terminal. Não há nada para além do fio que divide a vida da morte. A ausência de fé impede a crença da vida noutra dimensão. Há, talvez, um apego excessivo à materialidade do corpo. O corpo extingue-se e nada sobra, menos as memórias nas pessoas que foram queridas. Mesmo essas recordações se dissipam com tempo que prossegue, tão inexorável a esse esquecimento. E há, talvez também, as masmorras de uma racionalidade que é o paredão onde esbarra qualquer fé, o paredão que afugenta todas as divindades que se candidatam a aspergir a intensa luminosidade prometida da fé que propagam.

A não existência quando a vida se dilui em nada é isso mesmo – um agoniante nada. Resta a resignação, saber que algures virá a sentença definitiva que depõe o ponto final de uma vida. O que atormenta o ateu é o vazio que se anuncia após a lancinante despedida da vida. Se houvesse crença nos dogmas religiosos, algo – a que uns chamam alma, outros espírito – desprender-se-ia do corpo e seria a essência a perdurar na eternidade. Seria essa a existência para além da vida corpórea.

O problema do ateu é que não se consegue convencer dos dogmas religiosos. Excessivamente preso ao sentido corpóreo da existência, gostaria de acreditar que naquele instante em que as funções vitais do organismo cedessem lugar à cadavérica forma, o espírito – ou a alma, ou o seu sucedâneo – se libertariam das amarras do corpo que foi a demorada prisão, a extenuante vida terrena. Seria tão reconfortante se o ateu se convencesse que podia ser espectador das suas próprias exéquias. O momento mais elevado de exaltação egocêntrica. Poderia pairar sobre o seu funeral, testemunhar a despedida das pessoas que lhe foram queridas, observar as lágrimas vertidas em sentida homenagem. Seria a sua vez de se sentir incomodado pelo louvor póstumo, a vulgar hipocrisia que faz a sagração de uma vida quando ela já se despediu no seu leito de morte.

Só há um modo de contornar a perplexidade da morte: uma vida intensa, a capacidade para extrair todo o seu sumo. A diligência para evitar o desperdício da vida, da vida que por mais longa que seja se debate com a injustiça da brevidade, a injustiça indigna de qualquer divindade. É que a morte não precisa do meu sim, pois ela chega quando mais lhe convier. Só há um roteiro possível: fazer da vida uma bebedeira permanente, a vida como consagração da sua embriaguez. E se o corpo não acabasse por ser um obstáculo, até as horas de sono seriam dispensadas da sua função retemperadora para mais vida ser vivida.

Por tanto que a vida seja levada com intensidade ímpar, por mais arrebatamento a que a existência se entregue, há sempre tanta vida por tragar. Tanto por conhecer: tantos lugares, tantos livros, tanta música, tantas conversas que nunca chegam a ter lugar. A ingrata sensação que por mais recompensadora que a vida desfile diante dos olhos, logo a seguir a vacuidade ao perceber que muito mais haveria por decruar. E pouco adianta fazer da vida uma desenfreada correria. A metódica embriaguez da existência não é o paliativo para o dilacerante momento em que a vida se extingue. O que interessa é acreditar numa feérica imortalidade: é que todos o somos, imortais, enquanto a ceifa aviltante da morte não marca encontro connosco.

Sim, neste sentido Anaïs Nin fez a síntese: enquanto soubermos tirar toda a seiva que a existência oferece, e enquanto houver a capacidade para evitar mergulhos em precipícios desnecessários, a vida tão plena é um acto de coragem. A coragem suprema de nem sequer a morte temer. Quando ela se anunciar na sua impiedosa sentença, o comprazimento de uma existência carregada de significado. O desafio maior é esse: saber imprimir o rumo à vida que o seja de uma intensa embriaguez, uma embriaguez que habilite a sagração da vida. Nessa altura, o sentido do dever cumprido.

28.5.08

Os lobitos viraram tenores?


Finalmente, uma vocação para os valorosos “lobos”: em vez das repetidas derrotas no rugby, cantadores oficiais do hino, convidados que foram para o fazer nas cerimónias oficiais do 10 de Junho. Adivinha-se uma carreira musical para os lobitos?

Convém recordar: aquilo tinha sido um feito – a qualificação para a fase final do campeonato mundial de rugby, pela primeira vez alcançada. Contaram-nos histórias: que eram a única equipa de amadores. E foram-nos preparando para o que vinha a seguir: um aluvião de clamorosas derrotas contra os trutas que iam apanhar pelo caminho. Porque, enfatizavam-no sem descanso, eles eram os amadores em compita com os profissionais. Perder por poucos era autêntica vitória. Perder por menos de cem pontos com os neozelandeses teria mais significado que o triunfo destes no campeonato. E assim fomos reeducados para uma nova noção de feito desportivo, uma reinvenção do conceito que o conciliava com a colecção de derrotas.

Temendo que a populaça, entre a dormência para o rugby (afinal o rugby não é o futebol) e o olhar de soslaio para as sucessivas derrotas, esmorecesse nos amores pelos “lobos”, puxaram lustro ao nacionalismo e deram uma lição de bravura patriótica ao entoarem o hino com sentida exaltação. Diria: bravura patrioteira. Contudo, as massas ficaram embevecidas pelo arrebatamento com que aqueles paquidermes cantavam o hino, as gargantas gritando tanto o hino que decerto se esgotavam as energias para o jogo que viria a seguir ao desempenho dos tenores em pleno relvado. E eis que uma selecção de gentios entrava nos anais não pelas medalhas que são espúrio motivo de contentamento nacional.

Entretanto, os publicitários descobriram em alguns dos intrépidos intérpretes do hino valorosas personagens para campanhas de publicidade. Um deles, não se sabe se por ser cunhado do presidente da Comissão Europeia, desatou a dar a cara por sumos e automóveis. Curiosa, a imagem: ou de como gente que se destacou tanto pelas derrotas como pelo empenhado entoar do hino nacional passou a ser uma imagem que, ao que parece, vende produtos. A confirmar-se, ou somos tontos inebriados por falhados, ou temos uma generosa transigência com os desamparados das derrotas. Porventura a atracção colectiva pelo abismo, a queda pelas derrotas de uma gente esquizofrénica que é adoradora dos vencidos – talvez por não se conseguir desligar dessa condição, a sequela da extinção do império que glorificam as páginas dos manuais de História na escola secundária.

Soube-se agora: com o alto patrocínio de sua excelência o senhor presidente da república, os lobitos terão papel de mordomos artísticos nas cerimónias desse grandioso acto de catarse colectiva que é o 10 de Junho, dia de Portugal, de Camões e da Diáspora. Serão eles a cantar o hino nacional. Não virão com os trajes que envergam na véspera de um jogo de rugby: espera-se que se dispam das selváticas vestes e surjam apessoados, aperaltados com fatiota a preceito. Uma sugestão: os nós das gravatas não muito apertados, pois a jugular precisa de espaço para muito sangue fluir em alimento do fôlego generoso que se exige para gritarem o hino nacional a pulmões inteiros.

Ora se o momento é de exaltação da pertença nacional, um episódio ímpar de patriotismo no calendário anual, bem terá andado o presidente da república na lembrança dos bravos rapazes que ficaram conhecidos pelo pundonor com que entoavam o hino. É de decisões destas que se compõe a excelência de um mandato presidencial. A solenidade da ocasião não será boa conselheira de um dos gestos que enterneceu as massas: os lobitos abraçados enquanto gritavam o hino, insinuando o cimento da nacionalidade naquele amplexo tão forte que, aposto, deixava as primeiras nódoas negras nos ombros dos colegas. Em 10 de Junho, os lobitos apenas alinhados como se fossem os meninos da quarta classe em dia de visita do ministro ou do edil. Aconselha-se que o palanque onde vão actuar esteja a uma distância larga das personalidades. Senão, a ventania soprada com a encolerizada cantoria do hino virá despentear senhoras que passaram horas no cabeleireiro e descompor gravatas ajustadas ao milímetro dos exemplos da nação.

Às vezes as pessoas descobrem a sua vocação, uma inesperada vocação, diferente daquela que julgavam ser a sua. Passarão os lobitos a embelezar actos oficiais onde seja obrigatório o hino – quase como cantadores oficiais do hino? E, de tão carregada agenda de actuações, nem terão tempo para se dedicarem ao rugby? Uma derradeira pergunta: entre ambas as hipóteses, o que se perde mais?

27.5.08

Epístola de João César das Neves aos néscios


Recusar Deus é uma crença como as outras. No fundo trata-se de ter fé na ausência divina”, Diário de Notícias, 26 de Maio de 2008.

Já há muito tempo que uma prédica de João César das Neves não me perturbava tanto. Talvez por ser ateu e aquela frase tocar num ponto que me é sensível. Afinal, ela não se destinava a ser consumida pelos que se saciam na catequização que, às segundas-feiras, César das Neves faz nas páginas do Diário de Notícias. O destinatário é quem não se revê na fé de que César das Neves é embaixador na comunicação social, quando se despe da sua fatiota de consagrado economista.

O ateu, o ateu que não escorrega para o fundamentalismo laico, até é capaz de concordar com César das Neves quando reclama que se lê e escuta “(…) muito criticar a tolice e o delírio das religiões, mas raramente se refere a fragilidade intelectual da própria atitude ateísta que, com todo o respeito, é muito inconsistente”. É preciso decompor aquela oração. Não custa, até ao ateu não doentiamente anti-religioso, concordar que as religiões são um bombo da festa. Interessava perguntar por que razão isso sucede. É então que o passado vem à tona. O passado de enfeudamento da pessoa às religiões, a viciante dependência de credos, as tantas guerras feitas em nome de um deus, da superioridade de uma religião. No campeonato das religiões, apesar dos esparsos esforços de ecumenismo, são elas que se envolvem a si mesmas em “tolice”. Os dogmas são um vasto terreno onde apenas conta a descomprometida adesão motivada pela fé, aniquilando qualquer vestígio de racionalidade. Regista-se o ecumenismo involuntário de César das Neves, promovido a advogado de defesa de todas as religiões, e não apenas da que a cúria romana o investiu como embaixador na imprensa.

A segunda parte da oração é um libelo de auto-defesa contra os sistemáticos ataques de sectores ateístas contra religiões. Percebe-se a retórica: há ateus que passam o tempo a tentar demonstrar o indemonstrável – que deus não existe. A negação ateísta é tão indemonstrável como a comprovação que compõe a fé a qualquer religião. E também se entende que os crentes de qualquer religião se sintam incomodados ao verem a pesporrência com que se passeiam ateus no atrevimento da afirmação da inexistência divina. Da mesma forma que os ateus sentem urticária de cada vez que sacerdotes e seguidores asseguram o potencial de deus. Se bem percebi a parte final da oração de César das Neves, há muito de retórico, uma autêntica petição de princípio: dar aos detractores o mesmo veneno que eles tantas vezes oferecem aos crentes.

Se o diálogo entre as religiões é tão problemático, o diálogo entre crentes e ateus é um diálogo de surdos. Diria, uma impossibilidade lógica, ou uma ilogicidade. São linguagens que não se percebem mutuamente. Como ateu, não me preocupa demonstrar a inexistência de deus. Pertence ao domínio da intimidade de cada um. Porventura este seja um dos lapsos maiores das religiões: a intromissão na esfera individual, o apascentar das consciências, dando o roteiro necessário do pensamento que asfixia o pensamento individual, obrigado a ceder o passo perante o pensamento colectivo. À minha consciência não incomoda a fé dos outros. Da mesma forma que não me esforço – não posso – em convencer os outros que o deus em que acreditam não existe. Chega-me a convicção íntima da sua ausência. E a impossibilidade de impor o meu pensamento aos outros, por metódico respeito pelas convicções deles.

É aqui que César das Neves comete uma imprudência, um pecadilho que acaba por se voltar contra si mesmo. Ao tentar usar a mesma cicuta que os exacerbados laicistas destilam contra os católicos, César das Neves não se consegue distinguir deles. Desce ao seu nível e demite-se da putativa superioridade que aos católicos é devida (“dar a outra face”, não faz parte dos evangelhos em César das Neves lê?). Quando assevera que “recusar deus é uma crença como as outras, no fim da linha haveria religiosidade para todos os seres humanos, sem excepção – até para os ateus tão convencidos da sua não religiosidade. Só que isto não passa de um truque de retórica, um ilusionismo de palavras, uma ilusão tão conveniente a César das Neves. Recusar deus é o contrário do que afirma: é a afirmação de uma recusa de fé. Insistir no contrário é deslizar para a desonestidade intelectual. Por este caminho, até o ateísmo seria uma religião, quando é, por definição, a negação de deus. E, por aí, a recusa de qualquer religião.

Às vezes inventamos a verdade que mais nos convém. Nem que seja para afugentar os fantasmas que mais incomodam a verdade que sagramos.

26.5.08

Portishead - The Rip (Live at Later with Jools Holland)

Militarismo cavalar: da acefalia das praxes


As histórias de praxes académicas obedecem a sazonalidade. Costumam acontecer no início de um ano lectivo, quando os “veteranos” encabeçam a animalidade a que alguns adoradores do ritual, ensaiando uma erudição de pacotilha, chamam “socialização dos caloiros”. Desta vez foi quase no fim do ano lectivo que coincidiram duas notícias que colocaram o assunto fora do seu calendário natural. Primeiro, um “veterano” da Universidade do Minho decidiu tomar as rédeas de uma caloira e confundiu a “praxe” com o apaziguamento das hormonas aos saltos. Resultado: tentativa de violação. Logo a seguir uma decisão corajosa de um tribunal, que condenou sete energúmenos do Instituto Superior de Santarém por terem tido a generosidade de “praxar” uma caloira com excrementos de vaca.

O que são as praxes? São rituais, com o seu perfume tão atávico. Escondidas na retórica das “tradições” – e quem as invoca cobre-se com a pretensa autoridade moral da intangibilidade das tradições, ou perdemos o lastro que vem de trás, o legado dos antepassados. Não interessa interrogar se essas tradições fazem sentido, se as praxes a imberbes caloiros não são a expressão de humilhações absurdas, um olhar retrógrado que se recusa ao arejamento mental. Paradoxal: uma juventude mergulhada num impenitente conservadorismo, a mesma juventude que reclama para si um qualquer modismo de vanguarda, só porque são os mais novos – como se serem os mais novos seja a caução imediata para o arrebatamento do modismo.

As praxes são a brutalidade que cresce de intensidade à medida que os praxados de hoje são os que praxam amanhã, sempre na lógica de quem tem que ser mais atroz, humilhar mais ainda do que foi humilhado quando lhe tocou na carne a ternurenta prática da “socialização académica”. Como o álcool corre e rodos entre os episódios de praxe, por vezes o discernimento foge do ponto de mira e o que sobra pertence ao domínio da mais pura animalidade.

As praxes são uma linguagem codificada que abençoa uma hierarquização militarista e bafienta. Na hierarquia das praxes quem reina são os “veteranos”: quanto mais prolongado for o percurso académico destas criaturas, maiores as benesses no império das praxes. São eles os senhores, a quem todas as alas se abrem e todos os privilégios são devidos. Eu entendo o estatuto: afinal as praxes são uma compensação aos desvalidos das pautas de avaliação, aos infortunados por sucessivos chumbos. E como tantas vezes reprovam, os seus traumas têm que ser compensados com um estatuto privilegiado nas praxes. Justiça social em acção. Ou isso, ou entender por que se eternizam nos bancos da universidade: por entre a preguiça, caldeada por um manto de ignorância, sabe-lhes bem, uma vez na vida que seja, chamarem a si tantas prebendas.

Se o resto não fosse suficiente para execrar as atávicas praxes, só o militarismo caduco que entroniza os medíocres, os “veteranos” que encimam a organização, diria tudo acerca do ritual. É o prémio maior à mediocridade impante. Ano atrás de ano, uma engrenagem oleada impede que se ponha em causa a “tradição” da praxe. Quem invocar objecção de consciência e se recusar a ser gado fácil para gáudio da turba adoradora do ritual, merece o desdém da turba, um lugar ostracizado por ousar ser dissidente da acefalia geral. Admite-se que alguns não tenham coragem de invocar a objecção de consciência com o temor de serem marginalizados, alvo da chacota dos outros, porventura ficarem de fora da tal “socialização académica” que não passa de uma treta.

De humilhação em humilhação, com toques de militarismo coroado na forma de genuflexões aos reis do ritual, os veteranos, uma escalada interminável. As criaturas acham-se possuídas de uma criatividade inigualável aos inventarem novos sacrifícios aos incautos que se oferecem diante do ritual sacrificial que tanta algazarra motiva. Já houve quem fosse obrigado a simular assalto a um banco. Já houve quem tivesse que mergulhar a cabeça num balde de excrementos de vaca. Já houve quem tivesse que simular actos sexuais com os veteranos – porventura estes, coitados, a única vez que estiverem perto de tal acto. Já houve quem tivesse sido vítima de assédio sexual que terá terminado em tentativa de violação (e quantas vezes a violação não se terá consumado, ficando no atormentado segredo das vítimas mergulhadas na vergonha?). O que mais faltará para que esta aleivosia termine?

(Registo de interesses final: como não fui vítima de praxe alguma quando entrei na universidade, este texto não é produto de ressentimento.)

23.5.08

Sondagens na política – uma astrologia específica?


Haverá toda uma distância entre a astrologia e as sondagens eleitorais. A primeira reclama para si a qualidade de ciência mas tem muito de crendice, com um conjunto de generalizações que prejudicam a reivindicação do estatuto de seriedade. Sermos aglutinados em doze signos, mais os ascendentes que desmultiplicam variáveis, é a prova de como a humanidade se reconduz a um punhado de categorias que dilui a diversidade que enriquece a espécie humana. O que conta é o dia em que nascemos e a conjugação de astros que se fazia sentir nessa altura. Não interessam os genes, o sítio onde nascemos, a cultura que é todo um lastro e, mais importante que tudo, o ambiente que nos envolve e que influencia o crescimento, a personalidade que se molda.

Quando escuto ou leio especialistas em sondagens eleitorais sou levado, por instantes, a uma comparação com os astrólogos. Sei que os especialistas em sondagens têm mais razão em reclamar para a sua especialidade o rótulo de ciência. A ciência política aplica o timbre da seriedade científica a tal especialidade. Desenvolveram-se métodos que passaram pelo crivo da cientificidade, emprestando o capital de confiança às sondagens feitas em vésperas de eleições. Há quem se dedique, com a paciência dos cultores de qualquer ciência, a cruzar dados e mais dados relativos a eleições, a estudar tendências e a extrapolar conclusões reforçadas com a autoridade da indesmentível matemática.

Todavia, desconfio da ciência das sondagens eleitorais. Há uma mancha de que não se consegue desprender, esta ciência: exemplos e mais exemplos de fracassos estrondosos, um divórcio tremendo entre as previsões em vésperas de eleições e os resultados apurados após a votação. Os especialistas da ciência defendem-se: argumentam que a especialidade está em constante aperfeiçoamento. E que existe o elemento pedagógico dos erros, já que aprendem com as previsões que sairam furadas, o que diminui a probabilidade de erro nas previsões que vierem a elaborar no futuro.

Talvez o problema seja a minha desconfiança com a matemática. Os matemáticos só admitem a infalibilidade dos números. Lembro-me, dos bancos da escola, como bastava um erro no início de uma equação ou de um problema matemático para que tudo o que viesse a seguir estivesse condenado ao fracasso. Já nada mais se salvava do problema resolvido. Admito que os números são cutelos implacáveis, as algemas que não deixam lugar a deslizes no raciocínio com base em instrumentos matemáticos. Só que a matemática – e os matemáticos, e os que se socorrem da matemática como se fosse uma droga – deviam perceber que os números estão ao serviço das pessoas, não contrário.

Ao fazerem estimativas quanto à distribuição de voto pelos partidos que vão concorrer a uma eleição, e baseando essas estimativas numa amostra de eleitores que é isso mesmo, uma amostra, os especialistas das sondagens deviam ter a humildade de reconhecer que há uma hipótese de falibilidade superior àquela que costumam revelar na ficha técnica da qualquer sondagem. Apresentam uma probabilidade de erro que é “estatisticamente insignificante” (dois vírgula tal por cento, da última sondagem que vem à memória), a caução para a elevada seriedade das previsões que fazem. Nunca explicaram porque dão como adquirida essa reduzida probabilidade de erro: é um resultado de complicados cálculos matemáticos?

Por mais que vão aperfeiçoando a ciência das sondagens eleitorais, servindo-se da experiência passada e do cruzamento de experiências com eleições noutros países, há uma variável que não dominam: o comportamento humano, tão volátil. Por mais que tentem matematizar as probabilidades de alteração do comportamento humano, esta é uma variável que não me parece matematizável. Quem consegue antecipar uma súbita alteração do comportamento do eleitorado dias antes de uma eleição, incorporar essa hipótese numa sondagem de tal forma que a previsão bata certo com os resultados do sufrágio? Uma das belezas da humanidade consiste nos mistérios insondáveis que percorrem a mente. Esses mistérios são o factor aleatório que nem sofisticados modelos matemáticos conseguem retratar de forma fidedigna. E ainda que haja, nos modelos matemáticos que servem de suporte à realização de sondagens, lugar a uma variável que estima o aleatório, é um dado de incerteza que baralha as previsões.

Entramos no campo da especulação, que tolda a proximidade com os resultados das eleições a que as sondagens aspiram. É nesta incapacidade que reside o problema das sondagens eleitorais. Tapar o sol com a peneira, insistindo numa ciência infalível, é aproximar as sondagens eleitorais da crendice que anda de braço dado com a astrologia. De tal forma que já escutei especialistas em sondagens a justificarem o falhanço rotundo das previsões com a alteração inesperada de uma variável que consideravam essencial para a previsão elaborada. (E já nem falo aqui das suspeitas de sondagens encomendadas, o que torna mais escuro o céu de seriedade da ciência.)

Pois é: o problema é quando a realidade não adere às previsões. Só a cegueira explica que façam crer que o problema está na realidade e não nas previsões que fizeram. Tal como na astrologia: se uma pessoa de signo peixes se comporta mais como um leão, será que nasceu no tempo errado?

22.5.08

Altius, fortius, litius – ou para que serve o doping?


Há cada vez mais atletas apanhados na contramão do doping. Certas modalidades são mais pródigas: ciclismo, atletismo, halterofilismo, futebol. E até amadores que cultivam o físico se deixam aliciar por suplementos, pílulas e quejandos, só para melhorarem o desempenho físico, só para irem mais alto, para serem mais fortes, para chegarem mais longe do que o corpo permitiria. Eis o ideal olímpico – altius, fortius, litius. A meta suprema para atletas de alta competição e para amadores dependentes do exercício físico.

O avanço do conhecimento, de mão dada com engenheiros químicos, é o sinal dos tempos, o sinal da subversão do ideal olímpico. O ideal não deixou de ser altius, fortius, litius. O que mudou foi a forma para lá chegar. Já não contam os limites do corpo, ou a maneira como esses limites são maximizados através do treino. O sinal dos tempos está num chavão popularizado para desgraça dos que cultivam a ética impoluta: são os fins que interessam e não os meios utilizados para os atingir. Na às vezes selvática competição desportiva, há quem não olhe a meios para derrotar a concorrência. E se os atributos não chegam para vingar na competição, a batota do doping é a alavanca para falsear os resultados.

Tudo isto vem agravado com um estigma: os que triunfam não são os melhores, são os que souberam ingerir substâncias proibidas que empurram o limiar das capacidades físicas para além do que é suportado por um corpo humano. E há outra agravante: no meio do clima de suspeição, em que todos os desportistas desconfiam uns dos outros, quem arrecada os louros não beneficia de aplauso popular. Só é credor de desconfiança generalizada. As pessoas perguntam-se: terá o campeão de hoje – como todos os campeões de ontem – escorregado para o terreno do doping? Chega-se a um ponto em que os vencedores das competições deportivas onde o doping é useiro e vezeiro perderam o reconhecimento público. É o preço que pagam por terem ousado na trapaça das substâncias que alteram o desempenho corporal, levando-os a patamares sobre-humanos.

Não é comparável o logro provocado por desportistas de alta competição e a trapaça em que incorrem os amadores que cultivam obsessivamente o desempenho físico. Só há comparação nos casos em que uns e outros se socorrem de substâncias dopantes. A diferença está na proibição do doping no desporto profissional, já que ninguém pode proibir um amador de se pejar com anabolizantes e similares. E se digo que não há comparação quando uns e outros escorregam para a batota do doping, a diferença fixa-se na fraude que vicia os resultados de uma competição desportiva, elevando ao pódio os que mais martelaram a tecla da trapaça em detrimento dos que apenas aproveitaram os seus dotes físicos. Entre os amadores que são cultores do exercício físico, o preço do logro das substâncias que levam o corpo além dos limites restringe-se à esfera individual, não se extravasa para os outros.

Só que a batota, mesmo nos amadores que competem apenas com os seus limites físicos, é indeclinável. Esta gente não se satisfaz em atingir os limites do corpo. Quando sentem que chegaram ao limiar das capacidades físicas, elevam a fasquia recorrendo às matérias que falsificam os limites do corpo. No fundo, fazem batota com o seu próprio corpo, consigo mesmos. É o problema da ambição humana desmedida. É que os limites podem sempre alcançar mais longe, mais forte, mais alto. O que exige mais anabolizantes e similares, ou seja, que os limites atingidos pelo corpo estejam além das suas capacidades inatas. Nesta altura, os amadores tornam-se mastodontes burilados em laboratório, à custa de tantos químicos que os levam, orgulhosamente, a clamar que conseguiram açambarcar o ideal olímpico. O que interessa que o corpo venha a pagar um preço elevado, pois aquelas substâncias têm efeitos colaterais (colapsos cardíacos súbitos, perda de capacidades cerebrais, até a impotência sexual)?

E, sim, é um sinal dos tempos: ludibriar os outros está na ordem do dia. Uma mistura de ambição ilimitada com o convencimento de que todos os meios servem para a satisfação dos fins – ou na versão indígena, o aclamado “chico-espertismo” que ensina que os que não pisam esse terreno são os ingénuos que ficam para trás na selvática competição em que se tornou a convivência em sociedade. A batota vulgarizou-se. De tal forma que quem não vinga no palco da batota é que fica irremediavelmente para trás, derrotado, humilhado por não ter tido a arte de ser mais trapaceiro que os concorrentes.

Que não haja equívocos: mantenho-me nos antípodas de qualquer moralismo. Este texto não é um arremedo moralista. Só a constatação da realidade.

21.5.08

O decote de Angela Merkel


Há tempos, fez furor o decote arrojado da chanceler alemã, numa qualquer cerimónia oficial realizada à noite: um arejado decote, a permitir a respiração cutânea de vastas partes do busto que costumam andar cuidadosamente escondidas em pessoas da sua importância. Por falta de hábito, que na política – e mais quando os políticos ganham eleições e passam a representar o povo – a seriedade é ponto de honra. E como sérias pessoas que são, os representantes de todos nós devem pautar a conduta pelo recato, evitar declarações bombásticas que rompam com a modorra estabelecida, não terem pecadilhos que entrem em rota de colisão com os “bons hábitos” consagrados pela maioria. Devem ser sóbrios na vestimenta. Tudo para não causarem má impressão na multidão que representam. É que com a má impressão pode vir atrelada a desconfiança que, como se sabe, não dá votos e impede a recondução no cargo.

Merkel mostrou ousadia. Desviou-se de tradições bafientas e pôs a Alemanha a perorar sobre o decote que deixou à mostra as sedutoras curvas que insinuam o peito mal escondido. O peito da mulher que tem nas mãos os destinos da grande Alemanha. Fosse um país de tradições católicas e teríamos mais escândalo a escorrer das bocas pudicas dos conservadores de serviço, sempre diligentes no frete à igreja onde as suas consciências militam – já para não falar da pesporrência dos porta-vozes da própria igreja quando opinam sobre comportamentos alheios que esbarram nos padrões que ela fixa.

Ainda por cima, a audácia do traje de Angela Merkel deve ter causado moléstias nas esquerdas, sempre com a mania do monopólio da antítese das convenções estabelecidas, sempre convencidas de serem penhores das vanguardas. Não foi nenhuma actriz política vinda das esquerdas que teve o atrevimento de furar as convenções ao apresentar-se com aquele decote. E talvez por isso das esquerdas tenha soado um coro de protestos contra a insolência (protestam elas) da chanceler alemã. Um coro de protestos que é a auto-denúncia das esquerdas, afinal tão moralistas como as direitas conservadoras e arreigadas aos dogmas da religião. Lá no fundo, não há diferenças entre as duas modalidades de moralismo.

Eu diria que o gesto de Merkel foi uma lufada de ar fresco – literalmente – no cinzentismo militante dos políticos. Não vou dizer que eles surjam amiúde envergando folclóricas camisas, ou elas trajando aqueles andrajos que ficaram celebrizados no Maio de 68 ou no Woodstock – as túnicas floridas e largas que servem para esconder adiposidades irrecusáveis. Isto para os meus padrões estéticos, que são apenas os meus. Podiam, ao menos, desprender-se da maneira tão ensossa de se apresentarem em público. Eles sempre com fatos escuros, camisas descoloridas, gravatas monocromáticas que compõem um conjunto onde apenas se destaca a monotonia. E elas também no insípido tailleur senhoril, com a malinha a preceito, muito Maria de Belém (a antiga ministra da saúde socialista).

Tenho para mim que toda esta monotonia de vestes oficiais, como se fosse o fardamento obrigatório em que suas excelências ficam comprometidas ao alcançarem o tão sério papel de representantes do povo, é uma artimanha para manter a populaça dependente de uma também monótona existência. Assim passamos ao de leve, de mansinho, adormecidos pela monotonia das personagens incapazes de tocarem no carisma. Para que tudo seja feito com a nossa complacência, afinal o produto da prostração que nos é propositadamente inoculada.

Não sei se foi espontâneo, ou se foi um acto de calculismo: a chanceler alemã, assim tão decotada, foi muito mais Angela e menos Merkel. Um decote desvelando o busto que servia de regaço onde toda a Alemanha se deitava. Discretamente, uma bomba sexual, ainda que não haja nada na senhora que me peça água. A prova como pequenos gestos, discretos sinais, fazem mais pela tão sagrada imagem de um político do que o espalhafato, a espectacularidade imberbe dos galanteadores fora de tempo como Sarkozy ou Berlusconi.

Há o reverso. Se Merkel despertou um inesperado exibicionismo, não se imagina outras personagens (masculinas e, sobretudo no que me diz respeito, femininas) a ficarem tão bem em semelhante retrato. A fealdade exige o recato, a discreta e monótona vestimenta a esconder a feiura corporal. Para essas – e, olhando à arena política caseira, tantas há entre a multidão de senhoris socialistas – o melhor é que continuem assexuadas personagens. Como se lhes fosse aconselhado, simbolicamente, uma burka a cobri-las de uma ponta à outra.


20.5.08

Garanhões!


Há notícias que são uma revelação, porventura inesperada:

Quatro em cada cinco portugueses garantem que não abdicam de sexo a favor de um jogo de bola. Este número (…) é bastante superior à média europeia, que ronda os 50 por cento. Garante um estudo conduzido em 17 países europeus, segundo o qual apenas 17 por cento dos portugueses trocaria uma noite de sexo por uma partida de futebol.

Enfim à frente de uma lista oferecendo motivos de orgulho. Faz parte da desdita indígena a habitual vergonha que nos consome quando aparecemos na retaguarda dos campeonatos europeus de qualquer coisa. Há uma leitura óbvia deste inquérito: na hora H, a maioria dos machos lusitanos, por mais adepta que seja do futebol, não deixa créditos por mãos alheias quando as hormonas falam mais alto. Não há jogo de futebol que resista ao apelo da libido, a uma curvilínea mulher que se insinue diante do ecrã da televisão onde quarenta e quatro peludas pernas masculinas perseguem uma bola e duas balizas. Nessa altura, o olhar dos machos lusitanos desvia-se para outras balizas.

Só que a prudência aconselha a leituras que se desprendam do óbvio. Primeira advertência: há generalizações que se consomem em si mesmas. Tomemos como exemplo um adepto quase doentio do futebol: troca qualquer jogo por qualquer espécime do sexo feminino? É que há jogos de futebol e jogos de futebol, uns mais interessantes, outros apenas um medicamento contra insónias; como há mulheres e mulheres, umas mais dotadas e outras manifestamente desinteressantes.

Segunda advertência: as respostas que os habitantes lusitanos deram a este inquérito podem corresponder ao lema “cão que ladra não morde”. Que é como quem diz, muita homenzarrada, colocada diante da pergunta, terá omitido a reacção verdadeira. Terão dito o contrário do que fazem, só para não se acharem mergulhados no opróbrio pessoal da sexualidade reprimida pela doentia atracção pelo futebol. Até porque o bom macho latino não escorrega para estas futilidades, não troca a sua máscula condição pelo futebol – por mais másculo que o gosto pelo futebol possa ser exibido. Só que, curiosamente, os espanhóis – supõe-se, tão machos latinos como os lusitanos – “(…) estão no outro extremo da lista: 72 por cento trocam uma noite de sexo por um jogo”.

Não por acaso, o marialvismo é um atributo imputado à portuguesa masculinidade. Consta que as turistas estrangeiras, sobretudo as que nos visitam desde terras britânicas e nórdicos países, se encantam com a proficiência dos machos lusitanos. Há, pois, uma fama a preservar. Que nos distingue da homenzarrada Europa fora, que na hora H deixa as senhoras com água na boca, demitindo-se da função enquanto se entusiasmam com um jogo de futebol que passa na televisão. Estou a ver alguns estudiosos do comportamento humano a tirarem científicas conclusões: que haverá neste protelamento das hormonas masculinas alguma homossexualidade latente, ou como se pode entender que um homem – um homem que se gabe de o ser – troque o sexo com uma mulher por um jogo de futebol, um mulher pela visão de quarenta e quatro peludas pernas atrás de uma bola e duas balizas?

Terceira advertência, em seguimento da anterior: porventura somos mentirosos compulsivos. Se o futebol é um dos “F” que deprimem a portugalidade, como se explica que quatro em cinco nativos venham dizer que não trocam um jogo de futebol por uma mulher? Algo não bate certo. Talvez a confirmação de que somos levados para o terreno da mentira, nem que seja para obnubilar o que não convém confessar, não vá a garbosa masculinidade ser questionada. Assim como assim, a mentira compulsiva aprendem-na com o primeiro-ministro que lhes calhou em sorte.

Quarta advertência: a incongruência dos resultados fica patente quando se verifica o seguinte: “isso não quer dizer que os adeptos portugueses não sejam fervorosos. Foram aliás, os que mais responderam afirmativamente quando lhes perguntaram se o futebol era para eles como uma religião: 73 por cento disseram que sim”. Sabemos que estes são tempos difíceis para as religiões, tanto se vai enraizando o hedonismo. E sabemos como as religiões – com destaque para a quase oficial religião – combatem o sexo como distracção. Eis como o inquérito revela a fractura entre religiosidade e hedonismo. Pois se o futebol fosse mesmo uma “religião” (ou assim for levianamente encarado) por 73% dos inquiridos, essa multidão punha a religião para segundas núpcias perante o apelo da libido?

Apanha-se mais depressa um mentiroso que um coxo...

19.5.08

Assim se esboroa uma imagem tão polida


À falta de substância, a aposta de todo o património na imagem. Numa imagem. Governa-se através de sinais, de trejeitos que, acredita-se, prendem a audiência num encantamento pueril. Não é só infantil quem cai no engodo. A infantilidade maior é de quem patrocina o estratagema. A incapacidade obriga a desviar as atenções para o acessório. A imagem, o culto da imagem – de mão dada com um certo culto de personalidade que é sempre enjoativo – é um assalto à nossa inteligência.

Ora, somos destinatários de uma enxurrada de sinais codificados acerca da imagem cirurgicamente construída deste primeiro-ministro. Aprendemos que foi o salvador das desgraças semeadas pelos antecessores. Somos todos os dias ensinados, pela propaganda diligente que se insinua na comunicação social amestrada, que o homem é um reformador indomável. Com ele, a Lusitânia terá por fim entrado nos eixos. Ele é a ruptura com um passado envergonhado, o passado das oportunidades desperdiçadas. Não por acaso, repete à exaustão que “se fez história” a cada iniciativa revelada. Não faltará muito para termos murais pintados por jotinhas socialistas em que a personagem é retratada com um olhar altivo, erguendo-se no firmamento de onde nasce um sol radioso – o sol tão radioso entreaberto pelos seus dedos mágicos, a afortunada governação que nos presenteia. Se o fruto for espremido, pouco sumarento se revela o produto desta governação. Contudo, a imagem cirúrgica desnuda o contrário. Porventura, muito da fátua imagem que se pretende substituir à ineptidão.

Aos teimosos críticos que ousam não admitir – ou não conseguem perceber – a proficiência do timoneiro, a tarefa de desmontar os alicerces da infausta personagem fica facilitada. Basta destruir a imagem que invade os olhos, todos os dias, tão bem estudada que parece inexpugnável, sem brechas por onde se possa arremeter. Todavia, não há construções humanas perfeitas. A personagem e os cultores da sua imagem deviam sabê-lo.

No último périplo pelo estrangeiro estava agendado o habitual jogging pelas ruas da capital do país visitado. Já faz parte do ritual das viagens ao estrangeiro: um primeiro-ministro atleta, que faz as invejas dos colegas anfitriões que confessam não ter tempo, ou disposição, para cultivar o físico. Diria, um ritual que tem algo de supersticioso, pois não há digressão pelo estrangeiro que não contemple o convite à obediente e ingénua comunicação social para a corrida da praxe, não interessa que tempo faça, calor ou frio gélido, não interessa que as ruas por onde as pernas se arrastam em passada lenta sejam um mostruário de poluição (Pequim, Caracas) que desaconselha a prática do desporto ao ar livre. Tão ritual que o jogging é marcado como se de uma conferência de imprensa se tratasse. Tudo tão bem estudado. Tudo em compasso com a imagem que o herói gosta de cultivar de si mesmo: gaba-se de correr sete quilómetros numa hora.

É nas palavras que muitas vezes vem atrelada a mentira. E na própria imagem revelada, o complemento à mentira rotunda. Foi divulgada uma fotografia da personagem em pleno jogging que sela a mentira total que a envolve, a negação da imagem cultivada do homem imaculadamente saudável, que cuida do físico. O exemplo para todos nós, sobretudo para os que teimam numa sedentária forma de vida que esconde nas esquinas da vida o infortúnio de maleitas súbitas que até podem ceifar a vida. A fotografia deixa à mostra uma pança mal disfarçada, uns peitorais onde as adiposidades quase reclamam um soutien para as amparar. Para quem não esteja distraído pela propaganda que oleia a ostensiva imagem, ela, a imagem, sela a sua própria negação. Se o indivíduo for o praticante regular de jogging como nos querem convencer, como se explica a barriga arredondada que se insinua no fundo da t-shirt e aqueles peitorais nada escorreitos?

Sempre desconfiei da patranha. Em entrevista passada, o infalível primeiro-ministro, em exercício de revelação da intimidade que interessava mostrar, confessou que consegue correr sete quilómetros numa hora. Eu, que não sou atleta, faço nove quilómetros em trinta e seis minutos. Das três, uma: ou o timoneiro tem uma noção errada das medidas (da distância, ou do tempo, ou de ambos), ou é preguiçoso na passada lânguida que o transporta pelo suposto jogging, ou é mentiroso. Tenho para mim que a fotografia é reveladora da elevada probabilidade da solução se encontrar na derradeira hipótese.


15.5.08

Verrinoso


Há no provocador nato traços de um acidez irreprimível. Que tem o condão de cativar antipatias, anticorpos abundantes. Diriam: na raiz, o mau feitio congénito. Que, apesar de ser reconhecido, é alimentado à exaustão. Como se fosse o oxigénio necessário à subsistência, correndo o risco, não o fazendo, de se deitar nas remansosas águas da indolência mental.

O problema é que há pessoas atingidas pela corrosiva maneira de ser. Pessoas trazidas para a arena verrinosa pelo antagonismo que se alicerça. Uma teimosa verve que aborrece a integridade dos atingidos pelas provocações inatas. Não há ofensa nesta acidez impenitente – ou se há quem se considere ofendido, não era essa a intenção do verrinoso de serviço. Pelo caminho, um rol infindável de anticorpos à medida que se espalha a aura corrosiva. Das imperceptíveis mensagens escondidas nas entrelinhas, à ironia que se desnuda detrás dos espelhos: há quem perceba a cilada inofensiva, há os outros que não a conseguem discernir, e outros ainda que preferem desprezar o acto verrinoso.

A acidez sem fim é o lenitivo para uma existência assombrada pelos fantasmas dos outros. Há no perene incómodo com a existência alheia um certo desassossego interior, a confissão indirecta de amarguras vindas de trás, mal resolvidas. Porventura esta seja a melhor explicação para a militante atitude corrosiva, que entrega a mente no adocicado veneno da provocação. Pretendendo que a provocação seja uma perturbante invasão do seu destinatário, ou apenas que ele ou ela perceba que há na provocação um pretexto para a discussão de ideias. Ou, até, a não declarada confissão de que as ideias que nos outros trazem incómodo são o fruto de uma paradoxal inveja: as ideias que resultam da incapacidade de serem seu património.

Não há maldade na reiterada acidez destilada. E se nos outros a reacção é tangível à ofensa, ou se em vez de abraçarem a porta entreaberta para a discussão de ideias que a corrosiva atitude dá alento, a eles pertence a tutela da verrinosa personalidade que imputam ao provocador. Sobra a ambiguidade, o sabor indefinido que em alguns irrompe na incerteza da qualificação dos actos que, à primeira vista, seriam um insidioso comportamento.

O sabor amargo no fautor da corrosiva estaleca será ingrediente para uma conturbada existência. Nos alvores de uma conflitualidade perene, sem que essa conflitualidade atinja foros de flagrante embate que traga enraizadas inimizades à superfície. Contudo, uma existência atormentada pela possibilidade dos destinatários da ácida ironia perceberem mal o contexto, reagirem desabridamente e se instalar uma equivocada aversão. Ao verrinoso sobra a incapacidade para moldar as reacções alheias. Não se pode é demitir de um terreiro onde as ideias diferentes devem ser confrontadas, onde os pressupostos que as antecedem não se podem esconder na relapsa impossibilidade de serem expostos.

O verrinoso não se contenta com os bons costumes. Incomoda-se com as meias palavras, a cortesia hipócrita que varre para debaixo do tapete os antagonismos que podem dar lugar a desconfortáveis divergências. Nos brandos costumes, fonte de idiossincrasia paroquial, a explicação para a letargia dominante que nos afunda num atraso persistente. Se há palavra que devia ser proibida? Consenso. É por isso que o verrinoso se insatisfaz com a complacência dominante. Insurge-se contra a dormência dos que aplaudem a ausência de dissidências, por acreditarem que do unanimismo ressalta o avanço da espécie. Esquecem-se que a humanidade cresceu da apaixonada discussão, onde as ideias diferentes foram atiradas para a arena das divergências.

A acidez corrosiva é fermentada pela perturbação dos que se escondem da discussão de ideias com o argumento de que inimizades podem ser o saldo (negativo). Nunca a divergência das ideias pode ser asfixiada pelo imperativo de acarinhar os que queremos bem mas surgem do lado diferente da barricada. Esse é o sobressalto maior: calar as diferenças em homenagem às sensibilidades que não se podem beliscar. A individualidade reprimida não se compadece com o método. É então que fala mais alto o verrinoso, porventura adornado numa reacção epidérmica de não se conseguir calar perante a invocação da cortesia hipócrita.

14.5.08

Não dá ponto sem nó

Ainda na sequência do texto anterior, esta notícia agora mesmo divulgada:

"O primeiro-ministro José Sócrates pediu hoje desculpa por ter fumado no voo que transportou a comitiva governamental para a Venezuela e diz que vai aproveitar o episódio para deixar de fumar."

Talvez agora tudo se perceba. Estratégia, pura e dura. Encenação. O homem, afinal, é um simples homem. Até pede desculpa. E arranjou um ensejo para deixar de fumar.

Compre quem quiser.

As leis, respeitem-nas os súbditos


Dos manuais: “a lei é geral e abstracta”. E nem precisamos de mergulhar nos calhamaços universitários, que as sebentas do ensino secundário contemplam definição semelhante para formatação dos adolescentes alunos. A lei é geral, convém recordar, porque se aplica a toda a gente, desde que toda a gente preencha as condições para ser destinatário da lei. E é abstracta: que é como que diz, é cega, não olha à condição ou aos privilégios de quem se julga pairar sobre a lei, no pretexto para dela se considerar desobrigado.

Gabamo-nos: somos um Estado de direito, chancela civilizacional que nos coloca no altar do primeiro mundo. Num Estado de direito fala mais alto o império da lei. Da lei geral e abstracta. Todavia, há muitos descarrilamentos da lei, que nem sempre é geral e abstracta. Há muitos fundilhos na lei para que excelências várias possam adejar sobre ela, dispensados do seu respeito. Como se a lei fosse feita para ser respeitada apenas pelos súbditos. Ela é feita pelos suseranos, que logo a seguir se colocam num estatuto especial, acima da lei que fazem para os súbditos obedecerem. O problema, insanável, é que a lei deixa de ser geral e abstracta. Não passa de um enunciado, retórica, apressadamente desmentido pela prática.

O contexto: estão a dar brado as baforadas de fumo – com origem em tabaco – libertadas pelo primeiro-ministro e vários elementos da comitiva a bordo do avião que os levou até Caracas. Primeiro às escondidas do resto da comitiva, no resguardo de uma cortina que separava sua excelência mais o séquito de assessores; depois às claras, num desavergonhado escancaramento do fumo dentro de um avião, atropelando normas internacionais que o proibem. E, não houvesse essas normas, falaria mais alto o imperativo lógico que impediria qualquer membro deste governo de sacar de um cigarro dentro de avião: é que foi este governo que assumiu a paternidade de uma lei tão restritiva para os fumadores. Apetece glosar Frei Tomás: uma coisa é a pregação, cheia de tiques que tresandam a uma bolorenta moralidade, outra diferente é o que se faz.

Também me incomoda a forma moralista como a notícia foi dada a conhecer. Vou descontar a farsa moralista, porque o que interessa aqui é condenar a prosápia de suas excelências que têm a incumbência de nos governar, a prosápia de quem faz as leis para serem cumpridas pelos outros. Quem devia dar o exemplo escapa à tarefa. Se eu fosse fumador, não via neste episódio a porta entreaberta para mandar às malvas a apertada lei que cerca os fumadores por todos os lados? E se todos os fumadores, em uníssono, protestassem contra a excepção chamada a si pelo primeiro-ministro e comitiva e se recusassem a cumprir a lei que proibe o fumo em locais fechados? Assim como assim, o exemplo não vem de cima?

Estamos habituados a sucessivos casos semelhantes: por uma ou outra razão, inventando mil e um expedientes, os governantes e os figurões acabam embrulhados num estatuto privilegiado que os subtrai da condição de destinatários de certas leis. Já se sabia que o ministro da economia se passeia pelas auto-estradas do país a 220 quilómetros/hora sem que a polícia o possa autuar. A mesma personagem continua a dar o seu contributo para a confirmação de que, no terreno da prática, a lei não é assim tão geral e abstracta quanto ensinado nas escolas e universidades: acompanhou o chefe no fumo bolsado durante o voo para Caracas. Somos um Estado de direito até o ponto em que os vícios privados dos mandantes, ou as suas conveniências, oferecem poderosos argumentos para uma brecha na lei, só para que suas excelências sejam autorizadas ao desrespeito sem lugar a punição. Essa tomba apenas sobre os súbditos.

Adivinho a reacção ofendida do timoneiro: outra vez a ser perseguido pela comunicação social, que noticia detalhes quando o que interessa são os altos negócios que ele vai celebrar com o seu amigo presidente da Venezuela (e estamos conversados quanto ao calibre das companhias. Lá está: “diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és”…). Estará equivocado: não se trata de insignificâncias. É o tão importante reconhecimento de que há leis que comportam excepções só ao alcance dos figurões. Nessa altura, uma interrogação irrecusável: oito horas de voo, tanto tempo, o pretexto para a excepção que admite o fumo dentro de um avião? Se a pessoa que é primeiro-ministro for de férias como anónimo passageiro de um voo comercial, o que lhe acontece se não conseguir reprimir o vício do fumo?

Creio ter descoberto a explicação: o stress da governação, mais o voo de longo curso, explicam a necessidade do tabaco. Uma válvula de escape para tão importantes personagens justifica a outra válvula de escape, a que os põe a coberto das leis. Das leis que só se aplicam aos comuns mortais, não a suas excelências. A pergunta derradeira: a isto não se chama despotismo?


13.5.08

O anjo não tinha asas


Quando a manhã brumosa se tecia no seu alvor, havia esperança. Como se fossem as gotículas esparsas do orvalho matinal nos dias tardios de primavera. As gotículas a aspergirem a sua frescura nas sequiosas plantas, elas abrindo-se em contemplativo colo ao céu donde tombavam as refrescantes gotas. Essa era a essência da esperança dos eternos optimistas, dobrando cada esquina sempre convencidos do encontro marcado com um anjo protector – um anjo semeando as pétalas perfumadas de uma existência enfim colorida pelas exuberantes tonalidades de um prometido arco-íris.

Era de querubins que esperava, a cada dia que passava. E nem interessava que no restolho do dia, já quando a noite se fazia alta, a promessa de um anjo generoso estalasse crua na boca insaciável. Todos os dias a boca se tornava mais insaciável, pelo alimento prometido por um anjo envolto na sua alvura que teimava em alimentar apenas a fome num corpo faminto. Nem os dias sucessivos de decepção estorvavam a eterna esperança. Havia ali convencimento de que um dia, um dia qualquer, um exclusivo querubim estaria a bater à porta, portador das boas novas.

Todas as noites deitava-se com a sua ilusão. Imaginava o mágico momento da visitação do anjo que seria só seu. A alvura cintilante, as faces rosadas de uma meninice imersa na sua pureza, a aura selando uma bondade infinita. Em seu redor, uma frescura revigorante a contagiar-se. Dava de barato as propriedades curativas do anjo diante de si. Um singelo toque com a sua mão gélida, o bálsamo para a existência prometida: tudo o que até então fôra malsão seria esquecido, as íngremes ladeiras penhores de tanto sacrifício apenas um trejeito da memória. Não haveria então lugar ao ressentimento que consome as forças, o largo ressentimento que desvia da bondade. O anjo das asas farfalhudas seria o pórtico por onde os olhos apenas conseguiriam ver uma luz intensa, o sol constante a depurar o chão áspero já não feito de espinhos ensanguentando os pés.

Mas tudo isso era na véspera do sono – ou no limiar do sono, entrando já nos sonhos. Porventura os sonhos que traduziam a realidade sem mercê de se fazer apurada. Os dias eram uma procissão interminável de esperança adiada. Os dias, os meses, os anos, numa sequência sem fim, e a esperança apenas isso mesmo: um roteiro sem destino, todos os projectos esboroados à medida que as mãos tentavam capturar o vento. As palavras pela metade, o horizonte teimosamente toldado por um nevoeiro que tingia a vista com a escassez, um rombo em esperanças fermentadas desde tempos já imemoriais. Teimavam os anjos, um anjo que fosse, em demorar-se na sua ausência. Às vezes deixava-se derrotar pela teimosia do infortúnio. Era quando se interrogava se haveria mesmo um anjo a si destinado.

Certo dia, as esperanças irromperam com a refulgência de um raio. Tudo troou, como se fosse um tremor de terra a agitar o seu mundo particular. Sem que esperasse – e sabia-o que assim seria, inesperado –, diante de si um anjo. A alvura tão intensa que quase cegava, a idealização dos tantos sonhos que retratavam o momento ansiado. Um anjo pequenino, pois afinal os anjos são personificações de inocentes crianças que espelham na sua inocência a tremenda bondade que transfigura a vida de quem é bafejado com a sua visita. Encheu-se de contentamento, um súbito torpor apoderando-se. Inerte, sem reacção, à espera de um gesto magnânimo do querubim diante de si. As suas preces atendidas – as orações que dariam um novelo suficiente para preencher as páginas de fartos livros.

Já se preparava para olhar ao céu e agradecer aos deuses o acto de generosidade com que tinha sido agraciado, enfim o seu anjo exclusivo preparado para o acto transfigurativo que haveria de ser a varinha de condão, a inflexão na vida tristonha, o sedimento em falta para a existência cheia. Foi então que reparou no anjo que mostrava uma entristecida face, uma lágrima escorrendo pelas delicadas curvas do rosto. Os olhos marejados impediam a fala. O anjo na sua penitência parecia lamentar-se por não poder cumprir a promessa de semear uma existência preenchida ao seu protegido. Só então percebeu: o anjo, o anjo não tinha asas.


12.5.08

Não mais o BES verá a cor do meu dinheiro


A covardia é um exercício execrável. Quando vem de mão dada com a hipocrisia, bate no fundo da indignidade. Temos direito a protestar contra a ignomínia dos hipócritas covardes, denunciar o ensaio de realismo pragmático e dizer adeus às parcerias com os actores que entram para o alçapão da covardia hipócrita.

É o que sinto ao observar a reacção do BES, depois de ter convidado Bob Geldof para uma conferência onde o artista agora reconvertido a sacerdote dos desvalidos foi impiedoso para a cleptocracia angolana. Os ditadores de Luanda reagiram, muito ofendidos. Estão no seu direito. Em defesa do seu território. Patético foi o comunicado do BES, ainda a reacção angolana crepitava à saída do forno, “demarcando-se” do que Bob Geldof tinha dito na conferência organizada pelo banco. Havia necessidade? Alguém, no seu juízo, teria confundido as palavras do convidado com os sentimentos do anfitrião? Não houvesse que considerar os meandros dos negócios, os interesses que vêm coloridos com os milhões que coroam estes negócios, e haveria uma infantilidade incompreensível nesta “demarcação” que o BES quis solenizar em comunicado para o público consumir. Eu diria: o comunicado foi mais para apaziguar os ânimos (exaltados) dos tiranetes angolanos com quem se habituaram a fazer negócio.

A isto chamo a covardia dos que se põem de cócoras. Longe do BES ferir as susceptibilidades das intocáveis autoridades que se locupletam enquanto o povo passa uma vida pela pardacenta via-sacra de miséria. O que é notável é o desequilíbrio de reacções: os ânimos exaltados dos comunistas reciclados de Angola chegou para insinuar que o BES devia ser mais cuidadoso na escolha dos convidados para eventos daquele calibre. Ninguém ficou ofendido. O BES meteu o rabo entre as pernas e o mais que conseguiu fazer foi “demarcar-se” do que Geldof tinha dito em desabono dos infalíveis criminosos que mandam em Angola. É como se alguém de fora dissesse quem posso convidar para a minha casa. E eu, de cabeça baixa perante sua senhoria, anuísse na sugestão e logo de seguida me arrependesse de ter sido anfitrião de alguém que tenha sido antipático para sua senhoria.

Sinal dos tempos, somos testemunhas de amostras vivas do complexo do colonizador às avessas. A cleptocracia angolana permite-se o luxo de insidiosamente ingerir no antigo colonizador. Que se cala, pois há muito dinheiro a correr nos negócios que Angola oferece, entre o aproveitamento das inúmeras riquezas naturais e as necessidades de reconstrução de um país mergulhado numa profunda miséria. De onde apenas se salva a elite que gravita nos corredores do poder detido pelos comunistas reciclados. Ai de nós que deitemos cá para fora a ofensa, a mínima ofensa que seja, aos tiranetes de Luanda. O silêncio – perturbador – impera quando de Luanda chegam recados a Lisboa, como se fosse a vingança fria que se serve, para deleite dos torpes governantes angolanos, nos contrafortes dos séculos de colonização.

Remexer no passado dá mau resultado. São as feridas não saradas que se reabrem, purulentas então, trazendo de regresso ódios estéreis. Quando esse passado mal resolvido ferve num caldo de cumplicidades que dá alento a silêncios ensurdecedores para não incomodar os maus fígados dos angolanos que põem a assinatura nos negócios milionários, sobra o nojo das cumplicidades que fecham os olhos às más companhias - e às atrocidades que vitimam inocentes. Preferem amesendar com criminosos; a contrapartida é aliciante: os negócios, o dinheiro a rodos que corre a cada assinatura que sela esses negócios. É nesta altura que os capitalistas se esquecem da consciência e arquivam os mínimos da doutrina política em que foram educados (e, apetece interrogar: terão sido educados nela?). À tona, a fétida espuma da hipocrisia, a passadeira vermelha estendida para a covardia que se sobrepõe ao pragmatismo dos negócios.

Quando nem sequer a dignidade fica de pé diante dos imperativos dos negócios, tudo fica dito acerca do jaez desta gente. No fim de contas, a sua têmpera não há-de diferir dos vilões que alindam a cleptocracia angolana. Da minha parte, uma decisão. Os míseros trocos que guardo no BES de lá vão ser retirados. Sei que isso não faz diferença ao BES. Mas faz diferença à minha consciência. Que, ao contrário dos lamentáveis senhores do BES, não tem preço.


9.5.08

Males indígenas (III): é de heróis que precisamos?


Parece que vivemos num deserto. Para onde quer que olhemos, só a aridez das areias que tolhem qualquer vestígio de vegetação – nada consegue florir, nada fecunda na entranhada aridez que arpoa o seu ferrão numa perturbante quietude. E tudo soa a descrença. Pairam no ar os ventos que trazem o aroma de decepção e azedume, uma camisa-de-forças que nos amordaça ao cepticismo militante. Deitamos o olhar por trás do ombro, lá atrás no tempo, no outrora povoado pelas coisas belas que então havia. A saudade assenta na tremenda crise de hoje, na imensidão do nada que é o horizonte tão vasto e, todavia, claustrofóbico. O paradoxo é maior ao sentirmos que não há saída que se antecipe, como se estivéssemos perenemente hipotecados a este devir maligno.

Dizem alguns, soerguendo a cabeça entre a lamacenta existência: faltam lideranças fortes, o álibi para o ressuscitamento das massas, um fogacho de esperança – essa palavra sempre tão vã. Faltam-nos os heróis que arregimentam fidelidades, que dedilham a bússola de todos nós com a sua enorme autoridade, o seu incomparável carisma, conduzindo a turba para as laboriosas artes de um devir comum. Sentencia-se: é de heróis que as gentes carecem, guias que sejam a candeia acesa que alumia os deslumbrantes caminhos a palmilhar. E de obediência, que os divinos trabalhos dos heróis não condescendem interrogações.

Eu desconfio de heróis, seja qual for a sua têmpera, a maneira como se investiram na qualidade de heróis, o ramo onde a heroicidade se faça notar. Continuamos embrulhados nas profecias nunca confirmadas. Um adiamento que se segue a outro adiamento – num projecto eternamente adiado, à espera de um salvador que desate os nós que nos manietam. Sintoma de descrença no eu que habita em nós, sempre ávidos dos milagres da lavra dos outros, das miríficas personagens que estão para nascer ou para ser inventadas só para manter vivo o imaginário popular. Ou sintoma de uma indeclinável religiosidade, os quadros mentais estreitos que entregam o devir nas mãos de uma qualquer divindade – não interessa se sobrenatural, ou mitológica, ou carnal personagem investida em divinos dotes. Sempre à espera que a redenção caia do céu, uma pluviosidade que nem mil danças da chuva serão caução.

Os heróis, quais deuses terrenos, fazem parte da redenção colectiva. São os penhores da nossa incapacidade: frutificam dela e, assim que se enquistam heróis, tratam de preservar essa incapacidade. Alguém predestinado, com dotes para hipnotizar as massas, convencendo-as – ou elas convencidas – das alamedas cintilantes que se abrem, de par em par, com a prestidigitação do toque do herói. Pelo caminho fica a confissão assinada da pequenez de quem alimenta a espúria chegada de um redentor qualquer. A certa altura, tanta a desorientação, só querem ser agraciados com a oferenda de um herói, não interessa quem ele seja, desde que tais dotes sejam certificados. E pelo caminho fica também a individualidade de quem se empenha no prometido herói. Esfumam-se os vestígios da autonomia do indivíduo a cada passo que a sombria espada ameaça tombar e decepar o livre arbítrio.

Haja concordância com o diagnóstico: são amargas as sangrentas ruas por onde andamos, os pés dolorosamente cravados pelo plúmbeo devir que espreita nas dobras do tempo. Grande é a divergência na cura: a espera pelo próximo herói que há-de aterrar é inútil tempo gasto, as ilusões que se cegam, a negação de todos os eu que são o património de onde haveria de brotar a solução. Somos a demissão de nós mesmos quando investimos tudo num arvorado herói que nem sabemos quem seja. Sinaliza a tanta descrença nos tempos que há e o desgaste pela inépcia reiterada.

Os milagres são a essência dos mitos que mantêm acordados os que ainda se agarram às esperanças danosas. E se à volta tudo é aridez, um extenso campo onde nidificam os medíocres por omissão dos que têm qualidade, o desencanto que azeda a existência não pode tomar conta de todos os instantes. Que haja, ao menos a espaços, lucidez para reparar que a adulação de heróis que não existem mas estão sempre quase a chegar é a maior das demissões. A cura está em nós, não nos mitos que escondem a nossa incapacidade.

8.5.08

Males indígenas (II): Ninguém chumba!


A ministra da educação anda por aí numa cruzada a promover um mar de facilidades entre as criancinhas que andam na escola. Do alto da sua muito iluminada aura, a senhora argumenta que os meninos e as meninas não devem reprovar no final do ano. Que lhes faz dano irreparável.

Eu até entendo que as criancinhas, a caminho da estúpida adolescência, possam ficar traumatizadas se lhes for barrada a passagem de ano. Se tiverem pais normais, mais traumatizados ficarão: decerto estará à espera um castigo severo, umas férias monásticas, ou restringidas a um trabalho estival qualquer – desde que não se cometa a imprudência de arrastar os petizes para trabalho infantil. Será esta tão elevada condescendência da ministra e dos seus acólitos pedagogos que tece as teias de novas regras que proscrevem as reprovações do léxico escolar. Os professores, coitados, cada vez mais peças de enfeite de um sistema educativo desorientado, cada vez mais a negação do que se espera de um sistema de educação – que eduque. Apetece prognosticar: pelo andar da carruagem, algum dia o ministério há-de mudar de nome. Ministério da deseducação, ou ministério do facilitismo escolar.

Quem me explica como se compatibiliza a "paixão pela educação" e um sistema educativo que se notabiliza pelas facilidades dadas aos estudantes? Os sábios do reino asseveram que uma das maleitas que nos afundam nos campeonatos onde nos comparamos com os países europeus é a falta de qualificações. A tanta mediocridade que gravita em nosso redor não se explica apenas pelo que aprendemos – ou não aprendemos – na escola. Mas tem aí muita origem. Particularmente no desnorte endémico que afecta o sistema escolar e tomou conta das sumidades que fazem do ministério da educação um ninho de experimentalismo. Eles não se cansam de fazem dos estudantes cobaias. De experiência em experiência, tem sido sempre a descer. Um terreno muito fértil para a mediocridade asfixiante.

A ladeira é tão acentuada que o que custa é estancar a descida rumo ao precipício. Os pedagogos do ministério da educação não param de oferecer soluções surpreendentes, imprimindo mais velocidade à carruagem na sua descontrolada deriva ladeira abaixo. A derradeira invenção é um prémio aos medíocres, a medida que varre as reprovações do mapa da pedagogia escolar. O que é fantástico é reparar na argumentação da ministra da tutela: que será penalizante para as criancinhas passarem pelo crivo de uma reprovação. Exactamente: a ideia é essa – uma penalização para quem não consegue, ou não se esforça para alcançar, os níveis mínimos.

Primeira observação: de desresponsabilização em desresponsabilização, as mulheres e homens de amanhã serão gente impreparada para o que quer que seja – a menos que o sejam por paciente pedagogia familiar, ou que consigam amadurecer antes do tempo e, por esforço autodidacta, aprendam à sua conta o que a escola se demite de ensinar. No futuro, haveremos de ser exemplares no campeonato das estatísticas, com taxas de reprovação a roçar o zero. Que interessa que isso seja uma simples ilusão da estatística, os números apenas escondendo a mediocridade entretanto cultivada nas escolas? E que interessa que as qualificações humanas se distanciem mais ainda dos países que cultivam a excelência? O futuro será o cobrador de fraque da mediocridade instalada. Nessa altura, estes pedagogos e os ministros que lhes dão guarida estarão em sossego nas suas campas, porventura convencidos do inestimável serviço prestado. Não serão testemunhas vivas das muitas asneiras que assinaram.

Segunda observação: quando se pensava que o nível de exigência já andava pelas ruas da amargura, a ideia abstrusa da senhora ministra da educação trocou as voltas à compreensão das coisas. O culto das facilidades é o maior obstáculo dos professores, impedidos de exigir dos alunos por o nível médio ser tão fraco. A chancela para nivelar toda a gente por baixo. O que acarreta um custo elevado: os que se distinguem são os anormais, apontados a dedo como tais; e se teimam em se elevar entre a penumbra da mediocridade, sobra-lhes o opróbrio por o serem. Alguns desistem e deixam-se nivelar pela fasquia baixa por onde vegeta a multidão. O que irá acontecer quando esta fantástica medida das não reprovações entrar em vigor? O nivelamento ainda mais por baixo. Os estudantes a marimbarem-se para o que se espera deles – que estudem –, pois sabem que por mais ou por menos que estudem a passagem de ano está garantida.

Eu até compreendo a ministra da educação nesta sua privada cruzada. Como vértice da pirâmide, tem que oferecer o máximo exemplo. Defende que os estudantes deixem de reprovar no final do ano, porque se ela fosse sujeita a uma avaliação de desempenho era essa a sentença que estaria à sua espera. Para escapar dela, a milagrosa solução é bani-la – a começar pelas escolas que ela tutela.

7.5.08

Males indígenas (I): A terra onde “não ter passado” é caução de probidade


Mal vai a santa terrinha quando os salvadores da pátria, os novos D. Sebastião, se perfilam diante do público como gente desprovida de passado. É retórica, é certo. E a retórica, carregada das sinuosidades da semântica, dos alçapões onde se entretecem as palavras na sua ambiguidade, esconde múltiplos sinais. Que quererá um candidato à liderança do PSD dizer quando se apresenta “sem passado”? Apenas o contraste com os seus rivais, esses sim detentores de um cadastro que os implica em responsabilidades pelos males que causticam os indígenas?

Seja lá o que for, é impossível não prender a atenção às palavras que Passos Coelho e os seus apoiantes proferem, quase como pregão mor da candidatura. Ele não tem passado. Ora, o que dizer de alguém que quer cativar o voto dos apaniguados daquele partido apresentando, como certidão de credibilidade, a ausência de passado? Que dizer, caso venha a vencer as eleições e a ser entronizado líder do partido que alterna com o que detém agora o poder, de um político que quer ser primeiro-ministro e tem como capital de confiança a ausência de passado? Quem se casaria com um(a) desconhecido(a)? É insólito que se construa uma imagem alicerçada no arrivismo, um neófito que se distingue dos rivais por ter andado longe dos meandros da política nos últimos tempos. Quase como se tivesse estado em retiro, um monástico recolhimento de onde se solta agora para vir salvar um partido à deriva e um país também errante.

Admito que há nesta retórica o selo da semântica. Percebe-se onde Passos Coelho quer chegar. A diferença em relação aos rivais do partido, até em relação ao que será o seu adversário político caso saia vencedor das eleições directas no PSD – o primeiro-ministro. E que o seu recolhimento monástico, ele que quase tinha caído no esquecimento, seja laboriosamente apresentado como a vantagem da candidatura, a alavanca que faz a diferença. Ou seja: se a crise de personagens em que estamos mergulhados for sintoma da realidade, Passos Coelho terá a varinha de condão de inverter o estado comatoso porque ele andou fora da política enquanto videirinhos medíocres por cá andaram a afundar a pátria (e o partido de que ele faz parte). Quando o eixo do candidato é a putativa (sim, a putativa – e já se verá a razão) ausência de passado, apenas o cansativo recurso à imagem de uma salvífica personagem. Não aprendemos que o sebastianismo não é a cura, apenas o sintoma maior do coma dormente.

Regresso à retórica da personagem sem passado. Quem pode construir reputação, arregimentar apoios à custa de uma folha em branco, de um passado que é tão imaculado quanto inexistente? Quem pode confiar numa pessoa que aparece vinda do nada, como se o arrivista caído de pára-quedas conseguisse, só por assim chegar, sem passado, cativar as simpatias de multidões? A tentação para contrastar com a mediocridade dominante é o lenitivo que empurra Passos Coelho para a imagem do político sem passado, o político que nunca o foi. As pessoas estarão cansadas dos carreiristas que só são alguém na vida porque se souberam mover nos corredores da partidocracia. O sucedâneo de Barack Obama para consumo doméstico aposta na diferença: ele andou resguardado dessa mediocridade porque andou a fazer carreira fora da política. Eis o seu cadastro imaculado, o tal “não passado” que é a cenoura para o eleitorado enfeitiçado pela arte da retórica. A juntar a outros ingredientes que fazem parte da poção mágica da ambiguidade do candidato: não é de esquerda nem de direita, é liberal e defende a intervenção do Estado ao mesmo tempo – um caldo fétido que nidifica num atraso de vida chamado “consenso”.

Só que esta retórica é, de uma penada só, um embuste e um ardil. Ardil porque sintoma da doença terminal que apoquenta a santa terrinha quando alguém poisa na sopa de letras que é o leque de políticos e esse alguém diz “eu não tenho passado”. E um embuste, já que a estratégia de Passos Coelho é um estalinista revisionismo do seu passado. Ele afinal tem um passado: há que não esquecer os muitos anos que vegetou na liderança de um dos maiores miasmas da partidocracia caseira – as “jotas” dos partidos.

E mal andaria a pátria se apenas pessoas “sem passado” vingassem. Teríamos quase dez milhões de candidatos a primeiro-ministro.