21.8.08

Quando a muita erudição nos põe a falar com as paredes


Um debate: quem faz ciência, como a deve comunicar? Embebida de formalismo, decerto, pois há regras mínimas a respeitar, uma impressão digital da ciência honesta. Mas como deve ser a escrita que comunica os resultados da investigação científica? Arrevesada, inexpugnável ao leigo que se aventura pelos meandros de uma qualquer área que não domina?


Vulgarizou-se o entendimento que as comunidades científicas comunicam em círculo fechado. São um cluster encerrado sobre si mesmo, num hermetismo semântico que põe o seu discurso no domínio da inteligibilidade a quem não faça parte dessa comunidade particular. Com um preço que agora se discute: ciência que se coloca nos píncaros da sabedoria, só que uma ciência tão distante, tão longe do alcance da compreensão geral, que se expõe às fatais interrogações: e esta ciência serve para quê? E para quem? A resposta à segunda pergunta abre o caminho à primeira: parece que há muita ciência feita para auto-comprazimento pessoal dos investigadores, que palmilham domínios que parecem inúteis ao cidadão comum. Logo, uma ciência que se arrisca a levar com o rótulo da inutilidade.


Por dever profissional, leio bastante produção científica. Em grande parte dos casos, textos que mostram erudição, numa escrita que tem tanto de elegância formal como de ininteligibilidade para a pessoa comum. Também é verdade que essa ciência mais erudita não se destina a ser consumida pela pessoa comum, porventura nem sequer pelo autodidacta que entra por terrenos que lhe são desconhecidos e o faz por curiosidade de conhecimento. Daí que os ortodoxos da ciência, os cultores do conservadorismo na maneira de fazer ciência, defendam a sua dama: as comunidades científicas comunicam para dentro, não para o exterior. Exige-se-lhes que respeitem os cânones a que a ciência obedece. Desses cânones faz parte o discurso elaborado, a semântica hermética. Algumas vezes, uma ostentação de erudição que roça a vaidade intelectual. É como se através do texto os leitores sejam esmagados pela enorme erudição dos investigadores que são seus autores. Um gesto irreprimível, o de mostrar tão elevada sabedoria. A erudição como termómetro intelectual e, por vezes, cultural também. Ou apenas uma vaidade fátua.


O debate aqueceu com a deriva de alguns académicos que ousaram romper com a monotonia instalada e produziram literatura que procura fazer chegar a sua ciência ao público, ao público não especializado. Descerram as janelas do enclausuramento científico, divulgando a ciência a quem queira entender os seus rudimentos. Considero o desafio maior que um académico tem pela frente. É que comunicar entre pares, usando o mesmo código semântico de sempre, com as fórmulas por demais vulgarizadas, faz parte da sua rotina. Ficamos formatados para a linguagem hermética que só os pares entendem. Eis porque a divulgação da ciência ao público é o repto mais exigente: porque limita o académico a um discurso simples, escorreito, numa articulação de ideias que traduza clareza. Ou a divulgação esbarra na falta de bases dos leigos.


O problema é que a simplicidade é uma miragem. Talvez por estarmos habituados à escrita hermética, a sermos obrigados a fazer prova de vida da nossa tão elevada erudição, quando se ensaia a simplicidade da escrita fracassa a maior parte das tentativas. Contra mim fala esta impressão. Quando revejo a produção científica passada, dou com textos que não pertencem à inteligibilidade da pessoa comum. Textos que hoje não escrevia dessa forma. Acontece com a maior parte dos investigadores: quanto mais novos, maior a presunção intelectual que os leva a exagerar na ostentação de erudição. Como se fosse necessário impressionar os pares com insígnia académica mais elevada. Descontados alguns casos de dinossauros da academia que teimam em prolongar a assombrosa erudição vida fora, o amadurecimento enxuga os textos que resultam da produção científica. Simplificam-se, depuram-se. De tal maneira que o desafio maior consiste em emprestar simplicidade à ciência que se revela nos textos produzidos.


O esforço de simplicidade corresponde à democratização da ciência? E, por aí, passará alguma demagogia – pois que a simplificação semântica pode-se traduzir num caminho de sentido único se houver poucos leigos interessados em tomar contacto com essa ciência? Responder sim ou não é um detalhe insignificante. O que importa é despir a ciência do seu hermetismo, diluir os vestígios de erudição que apenas conseguem roubar espaço ao pragmatismo da ciência, desviando as atenções dos leitores para exibições inúteis de sapiência.


O que é frustrante é perceber, ao terminar um texto, que raras vezes se atinge a desejada simplicidade. Eis o paradoxo maior: fácil é escrever difícil, difícil é escrever fácil.


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