Devo ser ingénuo, mas não percebo a lógica dos jogos olímpicos. Ao fim de cada dia, entra-se-nos pelos olhos uma tabela que ordena os países pelo número de medalhas conquistadas. Como se fosse uma pugna entre países. Para se saber, no final dos jogos, qual a nação mais proficiente nos feitos desportivos. A perfídia das nações, e a malvadez dos nacionalismos, toma conta das olimpíadas. Uma aleivosia para os feitos dos atletas. Um esforço quase sobre-humano, para no fim de contas a medalha que arrecadam pertencer ao país que os viu nascer. O tamanho de uma enorme ingratidão.
Repito: devo ser ingénuo. Achava que nos jogos olímpicos competem as façanhas dos atletas. As façanhas individuais, quando o desporto é feito do desempenho de um só atleta, com as capacidades maximizadas pelo treinador. Ou os feitos colectivos, quando a medalha ostentada à lapela resultou do trabalho em equipa. Ainda assim, o somatório de feitos individuais. Donde, a interrogação: quem pode, em honestidade, julgar que uma medalha seja do país A se quem suou por ela foi um atleta, ou uma equipa de atletas, que por acaso nasceu (ou não…) no país em causa?
Confesso: o tema estava agendado há algum tempo. Só estava à espera que um dos imensos atletas olímpicos lusos subisse ao pódio em garbosa ostentação de uma medalha. Após muitas promessas que terminaram em amargas decepções, há um par de horas a nação pôde exultar de contentamento – aquela parte da nação que retardou o sono madrugada dentro, que a outra parte só quando acordar vai ser presenteada com a boa nova: a rapariga do triatlo chamou a si a medalha de prata. O dia vai correr bem. Assim como assim, a portugalidade cheia de orgulho. A pátria já não vai sair de Pequim virgem de medalhas. Por acaso nem interessa que haja tantos países, daqueles que costumam aparecer na angustiada rua do terceiro mundo, que fiquem à frente na tabela final das medalhas. Nessa altura, as mágoas varridas para segundas núpcias para não toldarem o faustoso garbo de umas escassas medalhas que os lusos atletas hão-de mostrar, para orgulho pátrio, à chegada ao aeroporto de Lisboa.
No entanto, continuo sem perceber porque se diz, no final de cada olimpíada, que "Portugal conquistou tantas medalhas". No triatlo, por acaso foram os não sei quantos milhões de lusitanos espalhados pelo mundo que carregaram Vanessa Fernandes na prova de natação? Foram eles que imprimiram o ritmo na prova de ciclismo? Foram eles que a empurraram rumo à medalha de prata na prova de atletismo? Curiosa ficção, esta: de vez em quando, cardiologistas saltam para a praça pública denunciando um povo sedentário, carente de exercício físico que explica por que tanta gente morre de doenças cardiovasculares. Contudo, somos atletas de sofá, partilhando com os verdadeiros atletas os seus feitos olímpicos. Para a desfaçatez ser total, demitimo-nos da condição de atletas de sofá quando os patrícios que prometiam medalhas saldam a participação olímpica com um decepcionante vazio. Nessa altura conseguimos ser incisivos críticos dos que fracassaram. Somos incapazes de perceber que a ajuda virtual que a nação inteira deu ao atleta fracassado foi insuficiente.
É pena que os jogos olímpicos não valorizem os feitos individuais dos heróis do certame – os que são mais fortes, os que chegam mais longe, os que chegam mais alto. Quando a sagração destes heróis tem lugar, é só para glorificar os heróis que se distinguem entre o escol: aqueles que regressaram cobertos de ouro. Fora disso, os olímpicos são tratados como se fossem uma competição entre países. Servem para ensaboar o ego pátrio. Um terrível erro de perspectiva. Aplicando ao caso de Vanessa Fernandes: só pelo azar de ter nascido portuguesa, é um abuso considerar que a medalha que ganhou pertence à lusitana pátria. É um insulto às privações que passou para chegar ao estatuto de atleta de alta competição.
Dirão alguns, em réplica: é o erário público que paga a deslocação da comitiva olímpica; logo, as medalhas com que regressarem são património da portugalidade. Outro erro de análise: o esforço de um atleta que resulta num lugar medalhado não pode ser a compensação pelo investimento do erário público. Como se fosse possível comprar um produto chamado desempenho desportivo. Por acaso os atletas são uma mercadoria com preço – o preço do investimento às custas do erário público?
O "espírito olímpico" é uma farsa. Não são as glórias individuais, os feitos dos atletas, que são exaltados. O que interessa é a vã glória das nações que se digladiam na tabela que contabiliza as medalhas. Este espírito olímpico é uma maneira pacífica de prolongar as guerras entre os países. E de aguçar o patético espírito xenófobo à medida que gente com passaporte igual traduz em medalhas o desempenho atlético. Já há muito me desenganei. Não perco um minuto com transmissões de provas olímpicas.
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