Feiras medievais. Museus, até. E filmes de ficção científica, livros que narram acontecimentos num tempo que ainda está por vir. A sagração de um tempo que se esquiva ao presente. Uma atracção patológica pelo tempo ausente. Arquivistas da memória, o sucedâneo de um saudosismo que parece negar a evidência do tempo em que vivem, do tempo que vivem. Como se o passado fosse o refúgio do tempo que é agora. Outros deitam-se numa adivinhação do tempo vindouro. Ensaiam um salto no futuro e ficcionam, de dentro da sua profícua imaginação, o mundo como será no tempo projectado.
Nunca fui a uma feira medieval. Não me encantam romances históricos, nem a História como ciência. A sede pela revisitação do tempo é uma curiosidade imprudente. O desaproveitamento do tempo que sobra para viver, o actual. Dir-me-ão: as memórias colectivas devem ser registadas para estarem disponíveis a quem a elas queira regressar. As memórias de outrora são património de hoje. O argumento derradeiro: a compreensão do tempo presente é limitada sem o lastro das memórias de antanho. A discordância não está nos princípios. É uma questão de grau, a intensidade com que o corpo se alheia do tempo que temos e resgata, demoradamente, o tempo enquistado nas memórias.
A curiosidade pelos costumes e formas de vida dos antepassados, a motivação maior para feiras medievais e para a exposição de um vasto acervo que traz fragmentos da história. O passado intemporal. Como se o passado nunca deixasse de ser tempo presente – ou, ao menos, uma ponte, uma longa ponte, entre tempos imemoriais e as memórias feitas no hoje que vivemos. Nas feiras medievais, pelo que delas leio e vejo em imagens noticiadas, a homenagem ao tempo muito distante, o tempo medievo onde havia grandeza pátria. Não sei se essa é a motivação, inconsciente que seja, pela fulgurante digressão pelos fragmentos da vida de outrora que se passeiam em feiras medievais. De permeio com a curiosidade histórica, uma certa recusa da modernidade? (Porque os tempos em que vivemos são sempre a vindicação da modernidade.)
Numa feira medieval, um mergulho nos tempos tão diferentes da asfixiante modernidade. As muralhas que petrificam a recusa de hoje. Dizem os puristas: o retorno à simplicidade da vida de outrora, sem a parafernália de facilidades que tornam a vida contemporânea num reprovável leito de bem-estar que sinaliza tanta alienação, um lamentável divórcio entre Homem e natureza. O libelo acusatório à tecnologia triunfante, à tecnologia que entretece os alvores da pós-modernidade. O regaço de outra manifestação de tempo ausente: a antecipação do futuro, com as cores adivinhadas em febril imaginação.
São filmes de ficção científica, filmes que não pertencem a esse registo mas que se passam num tempo futuro, livros que projectam na tela o vaticínio de um tempo. O contraste gritante entre os saudosistas que frequentam feiras medievais e os excitados visitantes de outro tempo ausente, o tempo que desconhecem se hão-de viver. Os primeiros na rejeição metódica da tecnologia, expoentes de um revivalismo naturalista. Reclamam do passado o fio condutor da essência humana, ainda não contaminada pela desumanizada tecnologia que transforma a maneira de viver das pessoas, ajoelhadas perante a omnipotência da tecnologia. Os segundos celebram a tecnologia, enfeitiçados pelos progressos da ciência, crentes nos efeitos sobre o bem-estar humano. Rejeitam a despersonalização feita pela asséptica tecnologia que toma conta das nossas vidas – e que, no futuro projectado, ameaça tornar-se a ditadora das vidas humanas, ou a sua nova divindade. Lembram que a tecnologia não nasce, nem evolui, por geração espontânea. Tem o dedo humano. E está ao serviço das necessidades humanas. Se uns vivem agarrados à nostalgia do tempo empoeirado de outrora, os outros demitem-se do tempo presente entretidos com as fantasias tornadas possíveis pelas especuladas conquistas da tecnologia.
Uns e outros, tementes do tempo em que vivem. Do tempo que são e de são fautores. Uma vertigem, apenas. Todavia, se o tempo for uma vertigem em si, porque o tempo é um instante que acabou de se consumir agora mesmo, somos todos prisioneiros da revisitação de tempos e modos e lugares, ou da prospectiva em ficção. Prisioneiros de uma vertigem: o tempo que é sempre ausente, porque instantaneamente se consome.
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