À entrada dos Estados Unidos, qualquer aparelho electrónico que contenha dados pode ser inspeccionado pela polícia de fronteira – um computador portátil, um PDA, um leitor de MP3, etc. Não tem que existir acusação. Basta uma suspeita. Em nome da segurança de todos, nesta luta ao terrorismo que já tresanda a patologia incurável. A fobia do terrorismo, o pretexto para fazer tábua rasa às bases do Estado de direito – convém recordar: um dos esteios desta civilização que se reclama superior.
Incomoda saber que alguém aterrando num aeroporto dos Estados Unidos pode ser interpelado pelos agentes e obrigado a revelar o que está dentro do computador portátil. É que os dados são uma fonte potencial de ameaça à segurança. É preocupante a perversão de um daqueles princípios onde medrou o Estado de direito: quem é acusado de um crime tem que ser informado das acusações. Saber de que vem acusado, que crime terá cometido. Só assim se pode defender. As pessoas que forem apoquentadas pela polícia de fronteira dos Estados Unidos nem sequer têm a oportunidade de saber de que vêm acusadas; são forçadas a abrir o computador portátil à curiosidade dos agentes e convém não retorquir, nem ousar muitas interrogações, ou um demorado interrogatório espera por elas.
A isto chamo devassa da vida alheia. Até é o mal menor: o pior é os suspeitos terem essa condição sem o serem objectivamente. Só os caprichos da amostra aleatória, ou de uma embirração pessoal do agente, explicam a obrigação de revelar o que está dentro do computador portátil, ao arrepio das garantias que eram (o verbo no passado não é inocente) património do Estado de direito.
Não me convenço com a lógica securitária que propagandeia a resignação do indivíduo perante as maldades fundamentalistas que pesam sobre o ocidente. Há mínimos que não devem ser pisados, ou ficam hipotecados os alicerces do que somos. O direito de um suspeito saber do que é acusado pertence a esse catálogo de mínimos. O senão é aceitarmos práticas parecidas com as que condenamos nos países colocados na condição de "inimigo conveniente". Nessa altura, não é salvação argumentativa dizer-se que do lado de cá somos democracias e respeitamos os direitos do indivíduo como contraponto ao que acontece do lado de lá. Os métodos esbatem a marca da diferença.
Também é inquietante saber que há quem, deste lado do mundo, conviva sem problemas com os atropelos aos alicerces da civilização que somos. Os que convocam as exigências da guerra contra o terrorismo são os mesmos que aceitam ser vítimas diante do pedestal da sagrada segurança, que muitas vezes se transforma em pretexto para abusivas intrusões. Não os aflige cederem direitos individuais, sacrificados no altar da (suposta) segurança de todos. É retórica que recorre à emotividade para cativar a adesão de muitas pessoas, convencidas que a única maneira de derrotar o terrorismo é ceder direitos individuais e asilarem-se num Estado que as policia a toda a hora e em todos os lugares. Que até obriga a mostrar o que está dentro dos computadores portáteis quando aterramos em aeroportos. Tenho para mim: quem assim se resigna, não se asila no protector e paternal, cada vez mais absurdamente paternal, Estado. Exila-se de si mesmo.
O argumento da segurança colectiva é reminiscência ideológica de quem cultiva esta maneira musculada de marcar presença com o pretexto do combate ao terrorismo. Aos que gostam de confundir rótulos e colocam a actual administração dos Estados Unidos no sempre confortável saco de pancada do "neo-liberalismo", deve-se recordar que os fautores desta política securitária são neo-conservadores – gente que já se deliciou nos verdejantes pastos da extrema-esquerda e entretanto deu um salto de gigante, convertendo-se à direita caceteira. Um liberal que saiba o que é o liberalismo não pactua com aleivosias que arremetem contra as liberdades individuais. Os fins não validam todos os meios.
Tudo isto é mais lamentável porque tem o travo azedo da concessão ao terror. Adivinho os fundamentalistas, escondidos numa caverna qualquer no Afeganistão, a lambuzarem-se de contentamento de cada vez que é noticiado mais músculo policial sobre as pessoas em homenagem às necessidades de segurança. Simbolicamente, a derrota do ocidente às mãos ameaçadoras do terrorismo fundamentalista. Os seus agentes já nem precisam de exercer terrorismo para destruírem os alicerces da civilização ocidental. Há gente deste lado que desempenha esse papel. Quando, de maneira oportuna, assinam a demolição de escoras do património genético da civilização que veio até nós.
Hoje, somos mais vítimas das consequências do terrorismo. Não do terrorismo. É como se já não morrêssemos da doença, só da sua cura.
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