13.8.08

Vai ser bom para o negócio das bonecas insufláveis


Uma improvável relação causal: ambiente e bonecas insufláveis. O ambiente, na moda, coloca a imaginação fértil ao serviço das políticas públicas. É um arraial de imaginativas medidas, o sucedâneo de um campeonato onde as nações rivalizam pelo troféu do ambiente mais limpo. Nestas olimpíadas, os governos passeiam pela trela os ministros do ambiente. Que puxam galões à notável imaginação e surpreendem o mundo com as medidas mais inusitadas para salvar o mesmo mundo da insensibilidade ambiental, essa chaga capitalista que tem semeado negras tempestades num ambiente que se quer alvo.


Oportunidade para a lusitana terra figurar à cabeça das particulares olimpíadas da governação ambiental. Como não está em causa comparar estatísticas, temos essa hipótese; caso fosse uma competição feita de dados estatísticos, os louváveis governantes teriam escondido a lusa participação no certame (por decoro; e porque a humilhação não semeia votos). Ou talvez não: já tivemos prova, e abundante, que no Terreiro do Paço laboram génios da estatística, diria, da manipulação estatística. Com os seus dotes para pegarem em números e da mentira propagandearem verdade, podia acontecer que dos fundilhos da tabela acabássemos por ir parar quase ao topo. Há quem lhe chame batota. Outros, sem problemas em conviverem com meios menos límpidos de fazer as coisas, condescendem com o método. Pois o que conta são os resultados.


Desta vez foi anunciado, sem a pompa habitual, que está em estudo a cobrança de portagens aos carros que entrarem em Lisboa. Foi sem a pompa habitual, porque a coisa ainda não passou da fase dos estudos prévios. Fica explicada a hesitação que conteve os auto-panegíricos da praxe quando o escol que governa nos agracia com decisões e políticas – que, já foi sentenciado uma e outra vez, "ficam para a história" ou "fazem história", consoante os casos e a temperatura narcisista do timoneiro da nação. A assertividade só permitida a quem nunca tem dúvidas deu lugar às tergiversações. Por um dia até parecia que a gente do governo era humana, tão humana quanto a dúvida que assalta a espécie humana com metódica assiduidade. E tivemos direito ao pasmo colectivo: terá escapado à máquina de propaganda uma contradição entre o ministro do ambiente, que disse uma coisa sobre o assunto, e a secretária de Estado das obras públicas, que opinou o contrário.


Há que o dizer, só por desonestidade intelectual poderiam os meirinhos da governação mandar soar as trompetas da solenidade quando libertaram a ideia de aplicar portagens aos automobilistas à entrada de Lisboa. A desonestidade intelectual não pode nada contra a informação que as pessoas possuem: e as pessoas sabem que a medida existe noutras cidades (Londres, por exemplo). A propaganda que vai embelezando o governo na antecâmara da pré-campanha eleitoral teve que puxar lustro aos melhores neurónios para mostrar que a portugalidade, sobretudo quando é governada de cor-de-rosa, é de uma ínclita têmpera que motiva inveja nos outros.


No fim do brainstorming, enfim a pólvora: aos insensíveis diante dos imperativos ambientais que teimarem em vir sozinhos de carro para Lisboa, cobra-se uma portagem mais elevada. Como se fosse uma multa pela teimosia que desagua na reprovável insensibilidade ambiental. As gentes que se organizem, sejam menos egoístas e partilhem boleias quando vêm trabalhar para a grande urbe. Ambiente oblige. O ambiente renova mentalidades e até provérbios: por causa do ambiente, "mais vale acompanhado do que só". Um dia destes, em nome do ambiente até hábitos de higiene no roteiro da partilha: o banho deixará de ser individual?


Já estava de pé a aplaudir medida tão criativa e vanguardista quando o congénito mau feitio colocou uma interrogação a pairar sobre a cabeça: como vão controlar o número de passageiros dentro de cada automóvel à entrada de Lisboa? Vou partir de pressupostos tecnológicos: se tanto nos gabamos de ter inventado a via verde – até exportamos o sistema – está fora de questão regressar à idade das trevas e ordenar a todo o automobilista que pare à entrada da cidade. Dá para adivinhar os monstruosos congestionamentos de tráfego que o controlo em nome do ambiente, se fosse feito dessa maneira, iria causar. Resta o controlo da matrícula com o auxílio das câmaras de vigilância. A peneira do sistema. É tão fácil saber quantas pessoas viajam nos automóveis que se encaminham para Lisboa.


O impenitente velho do Restelo que habita em mim não consegue reprimir o porém por duas vezes. Primeiro, a vigilância por câmara remota é desconfortável, sobretudo para aqueles que não queriam que ninguém saiba quem transportam para Lisboa. A menos que a ditadura do ambiente obrigue a repensar até o significado de privacidade. Segundo, com a fértil criatividade das gentes, mais vibrante quando sentem a necessidade de improvisar perante imprevistos, aposto na venda exponencial de bonecas insufláveis. Só para enganar as câmaras de vigilância. E para que os condutores que cultivam a solidão na viagem para o trabalho possam escapar à portagem insultuosa.


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